SABOREAR A PRESENÇA DE DEUS


«A Bíblia é para comer» — escreve José Tolentino Mendonça, numa das notas que compõem a segunda parte da obra «A mística do instante» (ed. Paulinas). Saborear Deus! Saborear a Bíblia, palavra de Deus! Eis o «sentido» que propomos para os domingos do «Tempo Comum». O facto de, em português, assumir a designação de «comum» não significa que se trata de um tempo «fraco» (em contraponto com os chamados tempos «fortes»), pelo contrário é um «tempo fortíssimo» (Mario Chesi). O itinerário que propomos consiste em aprimorar o paladar, em fazer um «MasterChef» da saborosa presença de Deus na vida de cada ser humano. «Um grande mestre e pedagogo brasileiro, Rubem Alves [faleceu o ano passado], dizia que a coisa mais importante é a cozinha. Um professor, antes de levar o aluno para a sala, devia fazê-lo passar pela cozinha. A cozinha não dá o alimento, dá o desejo. O paladar não é uma máquina de satisfação, é uma máquina de criar desejo» (José Tolentino Mendonça), criar desejo de Deus!

Tempo Comum: saborear Deus

Um dos aspetos mais significativos do Ano Litúrgico é sua dinâmica contemplativa: em primeiro lugar, centra-se na vida de Jesus Cristo; em segundo lugar, envolve-nos na vida de um povo com o qual Deus preparou a realização desses acontecimentos. Vamos (continuar a) concentrar a nossa atenção neste segundo aspeto, apoiados nos textos bíblicos da primeira leitura de cada domingo. Mas sem deixar de lado o primeiro, até porque as primeiras leituras (ao domingo) procuram «um ato, uma profecia ou um ensinamento do Antigo Testamento que tenha relação com o evangelho que se lerá e nos prepare um pouco para o escutar. Às vezes, como são pedaços curtos e como não estamos, porventura, muito formados no conhecimento do Antigo Testamento, estas primeiras leituras passam um pouco despercebidas. Se temos tempo e vontade, pode ser bom procurá-las na Bíblia e ler a passagem anterior e posterior, com as notas de pé de página que possa haver, e assim ficaremos mais inteirados e passaremos a conhecer um pouco melhor os livros do Antigo Testamento» (Josep Lligadas, «Celebrar o Ano Litúrgico», ed. Paulinas).
Acompanhar a vida dum povo, através dos textos proclamados na primeira leitura de cada domingo, permite-nos saborear cada palavra e cada gesto para neles descobrir o sabor de Deus, não só nesses acontecimentos narrados, mas também na nossa própria história. «Quando é que saboreamos? Quando detemos o mero exercício de devoração do mundo; quando se introduz uma lentidão interior; quando contemplamos com as papilas gustativas; quando o nosso corpo contempla; quando, todo concentrado, ele observa, surpreende-se, avizinha, entreabre o segredo, deixa essa espécie de epifania revelar-se. O sabor é sempre uma forma de intimidade que supõe o contacto profundo» (José Tolentino Mendonça).
A meta é compreendermos que «o paladar não é indiferente ao amor de Deus como não é de todo indiferente a qualquer amor. Deus saboreia-se, Deus é sabor». Ora, «o sabor não é uma coisa que possuímos exteriormente; é, como em todas as experiências que requerem uma arte de ser, uma coisa em que nos tornamos».

Laboratório da Fé vivida

«O sabor revela, ilumina, dissemina-se por dentro de nós até tornar-se vida». A sequência dos domingos «durante o ano» (interrompida pelos tempos de Quaresma e Páscoa) é um tempo adequado para fazermos o exercício de saborear calmamente a presença de Deus na nossa vida. Calmamente, pois «sem lentidão não há paladar. Talvez precisemos, por isso, de voltar a essa arte tão humana que é a lentidão. Os nossos estilos de vida parecem irremediavelmente contaminados por uma pressão que não dominamos; não há tempo a perder; queremos alcançar as metas o mais rapidamente que formos capazes; os processos desgastam-nos, as perguntas atrasam-nos, os sentimentos são um puro desperdício: dizem-nos que temos de valorizar resultados, apenas resultados. […] Uma alternativa será porventura resgatar a nossa relação com o tempo. Por tentativas, por pequenos passos. Ora, isso não acontece sem um abrandamento interno. […] A lentidão anota os pequemos tráficos de sentido, o manuseamento diversificado da luz, as trocas de sabor».

© Laboratório da fé, 2015


Tempo Comum, Ano B, Ano Pastoral 2014'15

Postado por Marcelino Paulo Ferreira | 12.1.15 | Sem comentários
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