VOLTA A OLHAR O HOMEM PELA PRIMEIRA VEZ


A História da Salvação desvela-se numa aproximação progressiva de Deus ao ser humano, de modo mais explícito a partir de Abr(a)ão, o pai dos crentes, convidado a levantar os olhos. E à medida que Deus se aproxima, o ser humano tem a possibilidade de se «deixar ver» e também de «ver» a Deus. Há um verdadeiro intercâmbio de olhares! Da parte de Deus, a aproximação ao humano culmina numa jovem, filha de Israel, natural de Nazaré: Maria. Nela, o Verbo de Deus faz-se carne, humanidade frágil. E, nela, a carne é envolvida pela glória divina: a «imagem e semelhança» do princípio encontram a sua profundidade mais plena em Jesus Cristo, Deus nascido de uma mulher. Neste Filho, é-nos oferecido um irmão e é-nos concedida uma paternidade insólita: a divina. Somos filhos de Deus Pai; não somos escravos nem marionetas de um deus falsificado. É necessário que o nosso coração se dilate a fim de que nele haja lugar para este Menino que nos fala da ternura de Deus.

Natal: volta a olhar o homem pela primeira vez

Natal é a festa do humano. Do humano, mas a partir de Deus. Todavia, Deus valoriza o humano de uma forma diferente da nossa. Nós preferimos valorizar os bonitos, os fortes, os poderosos, os inteligentes… os ricos. Deus mostra o valor divino do humano a partir daqueles que nos parecem menos humanos, aqueles e aquelas a quem tantas vezes excluímos da festa da humanidade. É, por isso, que Deus inaugura a festa do humano entre nós com a revelação, em primeiro lugar, aos que vivem na «periferia»: aos excluídos (pastores) e aos que «não são dos nossos» (magos). Por isso, o Natal, festa do humano, apresenta-se como um desafio a converter o nosso olhar ao verdadeiramente e mais profundamente humano.
Em continuidade com o Advento, propomos um tempo de Natal sob o signo do «olhar», mergulhados na «mística do instante» ou «de olhos abertos». «A mística de olhos abertos não se dirige a um Deus distante: ela vive na consciência de estar continuamente diante dele. [...] De facto, se acontece não o vermos, não é por estar demasiado distante, mas por ser demasiado próximo» (José Tolentino Mendonça). Assim também proclama o poeta: «Queres saber o lugar da morada de Deus? Volta a olhar o homem pela primeira vez. Pois o Verbo de Deus acampou entre nós».
Isaías continua também a ser o nosso «guia», o profeta que nos desafia a ter os olhos sempre bem abertos. Agora, a sua profecia joga com a figura do mensageiro e das sentinelas, ambos imprescindíveis, na antiguidade, para anunciar o perigo ou o êxito. Desta vez, o mensageiro traz notícias de paz e de vitória. Uma imagem reforçada pelos verbos: «anuncia a paz, traz a boa notícia, proclama a salvação». E são as sentinelas que «veem com os próprios olhos o Senhor». Este anúncio libertador e salvador, primeiro circunscrito a Jerusalém, estende-se a toda a humanidade: «todos os confins da terra verão a salvação do nosso Deus». Hoje, para nós, cristãos, a boa notícia (evangelho) não é que as «ruínas de Jerusalém» recuperam a esperança e a alegria; elas são um símbolo de como Deus nunca abandona o seu povo e de como é preciso abrir os olhos, quais sentinelas dos tempos hodiernos, cheias de alegria, «porque veem com os próprios olhos o Senhor».

Laboratório da Fé vivida

«O modo como vemos decide a qualidade do nosso viver». José Saramago, na epígrafe do «Ensaio sobre a cegueira», recorda: «Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara». Natal é tempo de reparar, «de ‘tomar conta da Palavra para que Ela tome conta de nós’. A Palavra com letra maiúscula ou, se preferirmos, o Verbo que se fez homem e veio habitar connosco. O nascimento de Cristo significa, por isso, o apelo a uma palavra diferente da nossa parte. Uma palavra vinculada a Cristo, inspirada nos gestos e nas ações que Ele realizou, uma palavra que seja testemunho para a sociedade» (Mensagem de Natal do Arcebispo). Entre os gestos realizados por Jesus Cristo destaca-se a forma como olha cada pessoa. «No olhar de Jesus, encontramos o olhar amoroso de Deus que anda à procura do Homem nos sítios mais improváveis, para transformar o seu coração. […] Jesus é o protagonista, é sua a iniciativa, mesmo que o motivo seja a nossa cegueira, a nossa maneira de viver ou de interpretar este instante». Jesus «Cristo é o terapeuta do olhar. Estende-nos a ponte para passarmos do ver ao contemplar e do simples olhar à visão da fé».

© Laboratório da fé, 2014



Volta a olhar o homem pela primeira vez

Postado por Marcelino Paulo Ferreira | 24.12.14 | Sem comentários
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