ESCUTAR A MELODIA DO PRESENTE
Estamos a viver momentos históricos marcados por processos de transformação, o que provoca sempre um clima de perturbação, até de intranquilidade. Neste sentido, este nosso tempo requer respostas novas para perguntas originais e, porventura, não previstas. Os desafios são apaixonantes, tanto a nível familiar e cultural, como em termos relativos à economia e à política. Precisamos de novos «olhares», na linha de caminhos já iniciados (recordemos o Advento e Natal sob a temática do «olhar… pela primeira vez»). Somos convidados a reinterpretar e a reorganizar a nossa vida, a assumir uma nova atitude de escuta, a «retornar à audição» (José Tolentino Mendonça) dos desafios atuais. No meio desta trama, situa-se a Quaresma que nos é dada a viver, tempo que também nos interpela de um modo novo e inaudito, ao qual temos de responder e em cujo processo temos de participar com uma proposta de conversão e de esperança. «Há tanta coisa que nos está a ser dita e que nós simplesmente não escutamos!».
Quaresma: escutar a melodia do presente
«Tempo de renovação para a Igreja, para as comunidades e para cada um dos fiéis, a Quaresma é sobretudo um ‘tempo favorável’ de graça» (Francisco, Mensagem para a Quaresma). Compete-nos discernir de que modo e com que sentimentos queremos viver a dinâmica quaresmal. Trata-se, juntamente com a Páscoa, de um tempo catecumenal, de renovação batismal, que nos convida a rever o nosso caminho de fé no seguimento de Jesus Cristo. Não é repetição de momentos cultuais, nem de práticas tradicionais. Não se trata de um acontecimento cíclico que voltamos a atravessar mais um ano. Cada tempo litúrgico é um repto à novidade e à esperança, situa-se no horizonte de sentido, para encontrarmos chaves de aprofundamento do mistério cristológico, fraterno e comunitário que não tem limites e que nos enriquece cada vez que voltamos a ele com um coração inquieto e inventivo.Uma das chaves que propomos passa pela «mística» do sentido da audição: «escutar a melodia do presente» (José Tolentino Mendonça). Aqui, «o desafio é atirar-se para os braços da vida e ouvir aí o bater do coração de Deus. Sem fugas. Sem idealizações». De facto, «a escuta talvez seja o sentido de verificação mais adequado para acolher a complexidade do que uma vida é. […] Na Regra de São Bento há uma expressão essencial, se queremos perceber como se ativa uma escuta autêntica: ‘Abre o ouvido do teu coração’. Quer dizer: a escuta não se faz apenas com o ouvido exterior, mas com o sentido do coração. A escuta não é apenas a recolha do discurso sonoro. Antes de tudo, é atitude, é inclinar-se para o outro, é disponibilidade para acolher o dito e o não dito, o entusiasmo da história ou o seu avesso, a sua dor».
A escuta do outro, para nós, só é plena com a escuta do Outro, que, nesta Quaresma, nos convoca para a Aliança, «com a sucessão dos episódios do Antigo Testamento: a Aliança de Deus com Noé, com Abraão, com Moisés na dádiva da Lei, a fidelidade de Deus à Sua aliança com a libertação do povo do Exílio, e, finalmente, a Nova Aliança escrita no coração. Este último tema, da Nova Aliança, escatológica, anunciada pelos Profetas, [...] leva o ouvinte da Palavra àquela aliança nova e eterna que Cristo realizou na Sua morte e ressurreição e que nos sacramentos pascais é oferecida a todos» (Mario Chesi).
Laboratório da Fé vivida
«A prática da escuta, na tradição bíblica, está muito ligada à fé. É a escuta que funda a radicação crente. [...] Não há fé que não nasça da escuta, de uma escuta profunda, de uma escuta até ao fim» (José Tolentino Mendonça). Eis outra das chaves fundamentais do nosso itinerário pastoral: a fé vivida na prática das obras de misericórdia. Por um lado, a necessidade de voltar a escutar a fonte primeira e autêntica que é a pessoa de Jesus Cristo: viver na escuta da Boa Nova de Jesus Cristo. Por outro lado, a necessidade de abrir o «ouvido do coração»: deixar de ser um coração de pedra, duro, rotineiro, indiferente e individualista, para ser um coração de carne, contemplativo, sensível, compassivo, solidário, misericordioso. Um coração semelhante ao de Jesus Cristo. Um coração disposto a «escutar a melodia do presente» revelada na vida do outro que merece a nossa maior atenção. «A Quaresma é um tempo propício para mostrar este interesse pelo outro, através de um sinal – mesmo pequeno, mas concreto – da nossa participação na humanidade que temos em comum» (Francisco, Mensagem para a Quaresma).© Laboratório da fé, 2015