As obras de arte no Laboratório da fé


Creio em um só Senhor, Jesus Cristo...
Encarnou pelo Espírito Santo, 
no seio da Virgem Maria
e se fez homem


Ave Maria...Virgo serena 

de Josquin Desprez (c. 1440-1521)



A Virgem Maria e Pôncio Pilatos são os únicos personagens históricos, para além de Jesus Cristo, obviamente, presentes no credo Niceno-Constantinopolitano. Um marca o início da existência terrena do Verbo de Deus, o outro assina o decreto do seu fim. A Virgem Maria está no mistério da Incarnação, Pôncio Pilatos está no mistério da Paixão, Morte e Ressurreição do Messias, Rei dos Judeus. Por isso, não é de estranhar que a Virgem Maria esteja tão presente quer na piedade do povo de Deus quer nas obras de arte. A peça que propomos para meditação é um dos mais importantes exemplos dessa presença do louvor à Virgem Maria na Música. Ela é um compêndio de várias texturas musicais desde a polifonia imitativa até à homofonia rigorosa.

Josquin Desprez
O texto é um louvor a Maria fazendo referência a vários momentos da sua vida celebrados nas respectivas festas litúrgicas e enquadrados por um louvor inicial e uma súplica final. O texto está assim composto:
Louvor inicial: Avé Maria, cheia de graça, o Senhor está contigo, Virgem serena.
Festa da Imaculada Conceição: Avé àquela de quem a Concepção enche de uma nova alegria os céus e a terra.
Festa da Natividade da Virgem: Avé àquela de quem a Natividade nos traz a alegria, como a estrela da manhã anuncia o verdadeiro Sol.
Festa da Anunciação: Avé, piadosa humildade, fecundada sem homem, de quem a Anunciação nos trouxe a salvação.
Festa da Purificação de Maria: Avé, verdadeira virgindade, castidade imaculada, a sua purificação foi a nossa purgação.
Festa da Assunção de Maria: Avé, gloriosa entre todos anjos, a sua Assunção foi a nossa glorificação.
Prece final: Ó Mãe de Deus, lembrai-vos de mim. Amen.
Nesta obra-prima, todos os detalhes são importantes e merecem ser referidos, todavia indicaremos apenas alguns mais significativos.
O louvor inicial começa com uma extraordinária polifonia imitativa em que os sopranos convidam ao louvor e as outras vozes respondem sucessivamente a esse convite. De notar a forma magistral como Josquin Desprez trabalha musicalmente a palavra “Serena” em que o baixo chega ligeiramente mais tarde como que para solidificar o acorde final dando-lhe serenidade.
Na festa da Imaculada Conceição, a música começa numa textura homofónica imitativa por grupos de duas vozes até as quatro se juntarem numa proclamação solene na palavra “Solemni”. De notar a maravilhosa forma como Josquin Desprez chega à palavra “laetitia” por vagas musicais sucessivas até à última proclamação por parte do contralto dando a ideia de um arrebatamento.
Na festa da Natividade da Virgem, a textura polifónica imitativa evoca a estrela matutina que precede o Sol, de notar também que a exposição das vozes vai do soprano para o baixo assim como a Natividade de Maria precede a Natividade de Jesus.
Na festa da Anunciação, seguindo o texto, a música está construída em textura polifónica por grupos de duas vozes: soprano, contralto / tenores, baixos. De notar que o texto: “sine viro fecunditas” e dito pelos homens.
Na festa da Purificação de Maria, a música começa em textura homofónica mas com os tenores em décalage de um tempo. A palavra “purgatio” tem um tratamento muito semelhante ao anteriormente dado à palavra “laetitia” eventualmente para pôr em relação a nossa alegria com a remissão dos pecados.
Na festa da Assunção, a textura polifónica representa a subida de Maria à glória celeste e prepara a súplica final de nós que ainda esperamos na terra essa mesma glória.
Na prece final, todas as vozes se reúnem numa única súplica em perfeita homofonia, representando a unidade espiritual dessa súplica. O “Amen” final dá a ideia de solidez e perseverança.
A mestria com que Josquin Desprez utiliza os recursos musicais do seu tempo abrindo simultaneamente novos caminhos à linguagem musical torna esta peça um marco fundamental na história da música ocidental. A perícia e a deferência com que o texto é trabalhado dão-lhe uma luz não à maneira do figuralismo dos madrigais mas na tradição do Canto Gregoriano.

Padre Hermenegildo das Neves Faria

Postado por Marcelino Paulo Ferreira | 27.6.13 | Sem comentários
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