Mensagem quaresmal em Quarta Feira de Cinzas de 2013 —


Caríssimos irmãos a caminho da Páscoa: 
1.Começamos esta Quaresma particularmente necessitados dela, por nós e por todos, na Igreja e na sociedade que integramos. Na sociedade portuguesa, antes de mais, onde dificuldades persistentes como que reduziram a cinzas muitas viabilidades que pareciam seguras e muitas previsões que se criam certas. Com maior ou menor inadvertência nossa, com maior ou menor inadvertência alheia, o resultado não foi o esperado e ainda há muito a resolver no âmbito particular e público, para que os inegáveis esforços de quem pode e deve e a notável persistência de quem não se resigna deem o resultado pretendido. Lá chegaremos, decerto, se formos todos a chegar, com justiça e solidariedade reforçadas. 
E, no entanto, perdura o sentimento de que não se trata de algo episódico, nem que episodicamente se resolva. Entre más notícias e outras mais esperançosas, poderíamos cair numa relativa indiferença, que apenas se aguentasse porque, ao fim e ao cabo, alguma entidade nos seguraria em casos extremos, a raiar a penúria. Entretanto, quem pudesse partiria e outros ficariam, vendo a marcha da história passar ao lado, muito ao lado. 
Não é justo este sentimento, nem faz jus a muito trabalho de quem não cruza os braços. Mas é ainda assim um sentimento que aflora em comentários recorrentes, na praça e nos media, qual negativismo de raiz, que desmotiva à partida. Ora, quando falamos de realidades assim, indicamos uma “crise” mais profunda do que meramente económica ou política que fosse. Estamos a falar de humanidade, estamos a falar de nós, onde mal nos sondamos e certamente sofremos. 
A Quaresma é do calendário cristão e aos cristãos primeiramente interessa e incumbe. Lembrando ao vivo os quarenta anos do Povo de Deus no deserto, em duríssima libertação que só poucos alcançaram, lembrando ainda mais os quarenta dias de Jesus, no deserto em que venceu todas as tentações principais, é oportunidade maior para fazermos nossa a sua vitória sobre quanto nos afasta de Deus, dos outros e do melhor de nós mesmos. 
Os exercícios quaresmais são a obra e o fruto duma fé verdadeira. Oração, esmola e jejum, na designação tradicional, podem traduzir-se por exercício espiritual de filiação autêntica, aproximação concreta das necessidades alheias e domínio de apetites vários que nos distraem do essencial. Conjugam-se aliás e muito bem, porque quem procura antes de mais o reino de Deus e a sua justiça, compreende melhor o que deve aos outros e consequentemente partilha do que tem e do que poupa. 
Não precisamos de grandes cogitações para concluir da oportunidade redobrada de Quaresmas sérias. Os discípulos de Jesus Cristo admiram-lhe a plena liberdade sobre si próprio, percorrendo a estreita senda que, nele mesmo, Deus abria ao mundo. Estreita senda, que a sua Ressurreição transformou em viabilidade garantida para quem a queira percorrer, no mesmo Espírito e com a sua graça. Se olharmos em redor, para outras possibilidades que porventura nos apresentem, continuaremos a responder com as palavras de Pedro, apesar de tudo e até apesar de nós: «A quem iremos, Senhor? Tu tens palavras de vida eterna!» (Jo 6, 68). 
Irmãos caríssimos, diocesanos do Porto: Acolhamos de coração entregue as palavras de Paulo, no trecho que ouvimos: «Como colaboradores de Deus, nós vos exortamos a que não recebais em vão a sua graça. […] Este é o tempo favorável, este é o dia da salvação!». 

2.Porque é de acolher que efetivamente se trata. Aquele sentimento pesado e difuso, atrás referido, que tanto desmotiva socialmente, pode igualmente expandir-se na vida eclesial que levamos. Tal não deve acontecer de modo algum, porque os discípulos de Cristo hão de ser, especialmente agora, sinais vivos de esperança certa, nos mais diversos ambientes e setores em que a coexistência decorra. Assim o concluímos por nós, mas sobretudo o ganhamos de Cristo e do que nos oferece. 
Leva-nos este ponto a uma consideração maior e mais exigente. Leva-nos ao que propriamente se chama conversão e quase rendição à graça e à justiça de Cristo, que só elas nos recriam e habilitam para o que importa sermos, para Deus e para o mundo. 
Algumas décadas de otimismo apressado tentaram-nos a considerar mais “horizontalmente” as coisas, o que acabou por nos desencantar de nós mesmos, como pretendeu desencantar o mundo. Tudo estaria ao nosso alcance, dizia-se, mas nem sempre se atingiram novos patamares de humanidade livre e solidária - e muito pelo contrário, nalguns casos mais gritantes. De facto, temos de nos ver de mais alto para nos abarcarmos a todos. 
Ao invés de tal horizontalismo, Jesus, de pés bem assentes na terra que foi sua, apresentou-se inteiramente “vertical”, em si mesmo abrindo tanto a terra ao céu como o céu à terra. Lembremos, por exemplo, como se apresentou segundo o antigo sonho do patriarca Jacob: «Em verdade, em verdade vos digo: vereis o Céu aberto e os anjos de Deus subindo e descendo por meio do Filho do Homem» (Jo 1, 51). 
Por meio d’ Ele, e nunca doutro modo. Os discípulos de Cristo, que verdadeiramente o queiram ser, sabem-se resgatados dum imenso peso, que só Ele suportou. Há cativeiros de alma que nem conseguimos esclarecer, quanto mais quebrar… Oiçamos de novo e guardemos melhor as palavras de Paulo: «A Cristo, que não conhecera o pecado, identificou-O Deus com o pecado por amor de nós, para que em Cristo nos tornássemos justiça de Deus». 
Reparemos que a iniciativa é divina, desvendando-nos o próprio modo de ser e agir de Deus. É Deus Pai que nos oferece em Cristo a reconciliação que por nós não atingiríamos nunca, como a não conseguiríamos agora. É essa a deslumbrante justiça de Deus, como se nos devesse o que gratuitamente nos oferece. Adianta-se no perdão, quase substituindo o ofensor. E tal acontece porque, em Deus, a justiça tem outra raiz, que se chama propriamente “amor”. 
O Papa Bento XVI, a quem ficamos devedores de oito anos de luminoso pontificado, escolheu para a sua primeira encíclica o título “Deus é amor”, plenamente acertando com a revelação cristã. Na sua última mensagem quaresmal, diz-nos agora, entre muitas outras coisas oportunas: «O cristão é uma pessoa conquistada pelo amor de Cristo e, movido por este amor […], está aberto de modo profundo e concreto ao amor do próximo. Esta atitude nasce, antes de tudo, da consciência de sermos amados, perdoados e mesmo servidos pelo Senhor, que Se inclina para lavar os pés dos Apóstolos e Se oferece a Si mesmo na cruz para atrair a humanidade ao amor de Deus» (Mensagem do Papa para a Quaresma de 2013. Crer na caridade suscita caridade, nº 1). 
Retiremos deste trecho duas consequências maiores, a nós referentes, como Igreja de Cristo, e ainda a nós mesmos, como Igreja no mundo e para o mundo, na nossa sociedade e circunstância:
Primeiramente, caríssimos irmãos e condiocesanos, retomemo-nos diante de Deus como permanentes devedores dum resgate que não mereceríamos. É surpreendente deveras que todos os que mais tentaram corresponder ao amor de Deus – de Paulo de Tarso a Francisco de Assis ou a Teresa de Calcutá – sentissem tanto a desproporção absoluta entre o dom de Deus e a capacidade humana de se retribuir inteira… Por nós, não podemos nem queremos considerar-nos outra coisa senão pobres pecadores, constantemente carecidos do perdão de Deus. Seremos até a única comunidade humana que, ao reunir-se, começa por se confessar pecadora, diante de Deus e dos homens, «por pensamentos e palavras, atos e omissões», e insistindo cada um «por minha culpa, minha culpa, minha tão grande culpa». 
Esta a verdade de que partimos nós, condição indispensável e assumida para acolhermos a verdade maior da misericórdia divina. Juntando uma e outra, continuamos a ser - como já antigamente se dizia - «a santa Igreja dos pecadores». Dos pecadores que assim nos confessamos e da santidade divina que nos é oferecida, pela mediação eclesial que Cristo não dispensa. Como outrora mandou aos discípulos que distribuíssem o pão com que só Ele alimentava o povo, como os mandou perpetuar a eucaristia em sua memória, como lhes confiou o serviço do perdão e da paz… E como nos envia todos a todos, caríssimos irmãos e irmãs, para que chegue a cada um a vida divina que só assim se expande. 
Nada sucede por nós, mas porque em nós atua o amor divino, que só “merecemos” porque a ele nos rendemos, sem a mínima presunção da nossa parte. E o próprio Jesus Cristo o esclareceu na conclusiva parábola do fariseu e do cobrador de impostos, quando foram ao templo para orar. O primeiro, mais propriamente para afirmar a sua suposta impecabilidade, ali de pé e gabando-se de cumprir o preceituário completo. O segundo, nem levantava os olhos do chão e só conseguia repetir: «Ó Deus, tem piedade de mim, que sou pecador». Sabemos a conclusão da parábola, como Cristo a tirou: «Este último voltou justificado para casa, e o outro não. Porque todo aquele que se exalta será humilhado, e quem se humilha será exaltado» (cf. Lc 18, 9-14). 
Mas, se a humildade religiosa é a primeira consequência a reter, a humildade diante dos outros é a segunda e igualmente necessária. Aquele fariseu cheio de si e da sua suposta grandeza, no próprio orgulho com que se apresentava diante de Deus, transportava um profundo desprezo pelos seus semelhantes. Pois assim mesmo dizia: «Ó Deus, dou-te graças por não ser como o resto dos homens, que são ladrões, injustos, adúlteros…». Assim blasfemava ele, mas assim não blasfemaremos nós, atribuindo-nos uma impecabilidade que só a Deus pertence. Como o próprio Jesus o afirmou, para não restarem dúvidas: «Ninguém é bom senão um só: Deus» (Mc 10, 18).
Em suma, caríssimos irmãos: Acolhamos esta Quaresma como oportunidade concreta de libertação de raiz. Por nós, não somos melhores do que outros, mas queremos substituir qualquer auto-convencimento pela conversão sem reservas à misericórdia divina. 

3.Só assim ficaremos aptos para servirmos a sociedade que integramos, com disponibilidade oferecida e reforçada. Quem se sabe recuperado pela graça de Cristo, confessa um Deus que não desiste de nenhuma das suas criaturas e mantém constantemente a vontade criadora que subjaz a toda a existência. 
Sobretudo por isso, estamos com todos os outros nas inevitáveis fronteiras da justiça, da solidariedade e da paz. É ainda Bento XVI a dizer-nos: «Quando damos espaço ao amor de Deus, tornamo-nos semelhantes a Ele, participantes da sua própria caridade. Abrirmo-nos ao seu amor significa deixar que Ele viva em nós e nos leve a amar com Ele, n’Ele e como Ele» (Mensagem, nº 2). 
Nas nossas comunidades cristãs, certamente, e por elas no espaço em redor. Mas também nas escolas, nos hospitais, nas empresas, na sociedade em geral, estaremos com todos e para todos, com as competências que tivermos ou ganharmos, iguais entre iguais; e como “sal da terra”, que não perde a força que Deus sempre garante, para que tudo alcance melhor gosto e sobretudo não se corrompa e degrade. 
Porque é magnífica a declaração mas tremenda a advertência que Jesus Cristo nos faz: «Vós sois o sal da terra. Ora, se o sal se corromper, com que se há de salgar? Não serve para mais nada, senão para ser lançado fora e ser pisado pelos homens» (Mt 5, 13). Lembremos a advertência, mas apliquemo-nos na declaração. E que aqueles que connosco não desistem de resolver todas as crises, das famílias ao Estado, da economia à sociedade, da escola à cultura, possam confirmar que, ali mesmo onde está um discípulo de Cristo, não há desistência prévia, não há pessimismo paralisante, não há cansaço insuperável. - Ofereçamos esta exercitação quaresmal de crentes como incentivo nacional de esperança! 

Manuel Clemente 
Sé do Porto, Quarta Feira de Cinzas, 13 de fevereiro de 2013



Postado por Marcelino Paulo Ferreira | 15.2.13 | Sem comentários
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