Reflexão mensal sobre as obras de misericórdia [3]


«Jesus sentiu as mordedelas da fome, foi servido à mesa e comeu o alimento que outros prepararam para ele, alimentou multidões famintas, fez da mesa um lugar de encontro e de comunhão humana, em que mostrou como Deus está próximo do homem, e que do vinho servido e do pão partido e repartido pelos comensais, na Última Ceia, fez o sinal da sua vida entregue por todos os homens» (Luciano Manicardi).

Dar de comer a quem tem fome

O ato de comer tem a ver com a atividade cultural do ser humano: implica o trabalho, a preparação do alimento, a sociabilidade (tanto na aquisição e preparação do alimento, como no seu consumo), o convívio. O ato de comer remete para o ser corpo, tanto em termos de necessidade, como em termos de ligação com o universo: comendo, com efeito, assimilamos o mundo em nós, transformando-o. Comer requer tempo e capacidade de relação e de comunhão. A cultura do «fast food» obriga a comer à pressa e sozinhos, em mesas anónimas, de pé, utilizando refeições preconfecionadas e alimentos congelados. Sintomas deste corte entre o comer e o seu fundamento humano e relacional são as desarmonias e as patologias em rápido crescimento nos países ocidentais, em que, apesar de tudo, existe abundância de alimento e de dinheiro para comprá-lo: obesidade, anorexia, bulimia, distúrbios alimentares de vários tipos. Nos países pobres, o problema é ter alguma coisa para comer. Aqui volta a levantar-se a questão do desequilíbrio entre o rico, que se banqueteava lautamente todos os dias, e o pobre Lázaro, que passava fome à sua porta (cf. Lucas 16, 19-31). Mas toda a gente sabe, hoje em dia, que a fome não é um problema irresolúvel ou um facto a que nos devemos resignar de forma supina, porque as causas são políticas e económicas, e a principal é a distribuição desigual das riquezas. Alcançar a segurança alimentar (possibilidade para todos de aceder física e economicamente a alimento suficiente) é essencial para a segurança e a paz do mundo. O número 27 da Encíclica «Caritas in Veritate» de Bento XVI (29 de junho de 2009) aborda o tema da fome, e faz da obra de misericórdia «dar de comer a quem tem fome» uma responsabilidade eclesial diretamente derivada do exemplo de Jesus de Nazaré.

O pão nosso de cada dia nos dai hoje

A oração que Jesus Cristo ensinou aos discípulos, e que os cristãos repetem diariamente, contém a petição do pão dirigida a Deus. O nome do Deus a quem se dirige a oração é «Aquele que dá o pão a toda a carne» (Salmo 136, 25), ou seja, a todo o ser vivo, a toda a criatura. A petição diz respeito ao pão material, ao alimento essencial para viver, símbolo de tudo aquilo que o ser humano precisa para viver. O orante que pronuncia este pedido, ora não só por si, mas em nome de todos: o filho que pede pão ao «nosso» Pai não pode esquecer o irmão que dele carece. Aqui, o indicativo de Deus torna-se imperativo do humano: pedir o pão a Deus implica assumir a responsabilidade por quem não tem pão. Com efeito, Deus dá o pão ao ser humano, mas também através do ser humano: este é o seu destinatário, mas também o seu mediador. Ao pão dado por Deus corresponde o pão repartido pelo humano. Retomando as palavras dirigidas aos discípulos, face às multidões cansadas e famintas, tam-bém poderíamos dizer: «Dai-lhes vós mesmos de comer» (Marcos 6, 37). Esta ordem, dirigida aos primeiros discípulos, estende-se a toda a Igreja, na história, e chega até nós, hoje. Assistimos assim à passagem do dom de Deus à responsabilidade do ser humano: uma responsabilidade que está no coração da Eucaristia e do Dia do Senhor, que desde sempre estão ligados a uma práxis da caridade, da visita aos doentes, de levar de comer a quem dele carece, de fazer coletas para os pobres. Os cristãos fazem-no recordando o que afirma Tiago: «Se um irmão ou uma irmã estiverem nus e precisarem de alimento quotidiano, e um de vós lhes disser: ‘Ide em paz, tratai de vos aquecer e de matar a fome’, mas não lhes dais o que é necessário ao corpo, de que lhes aproveitará?» (Tiago 2, 15-16).

Ensinar os ignorantes

«Compreendes, verdadeiramente, o que estás a ler?», pergunta Filipe ao funcionário etíope que está a ler uma passagem do profeta Isaías. E ele responde: «E como poderei compreender, sem alguém que me oriente?» (Atos dos Apóstolos 8, 30-31). Este diálogo mostra a necessidade de uma instrução para entrar no conhecimento da Escritura. De um modo mais geral, toda a vida de fé requer um ensinamento. Como este ensinamento tem uma dimensão religiosa fundamental, não admira que, no Antigo Testamento, o próprio Deus seja chamado «Mestre», e que o orante se lhe deve dirigir para ser iluminado e tornado sábio. Mesmo o simples, o inexperiente, o ignorante, torna-se sábio pelo conhecimento da vontade do Senhor: «As ordens do Senhor são firmes, dão sabedoria ao homem simples» (Salmo 19, 8). É com os profetas, sobretudo com Oseias, que a «Tora» (termo muitas vezes traduzido por «lei», mas que significa «instrução», «ensinamento») indica o conjunto unitário da vontade de Deus. Este conjunto passará a ser a Tora escrita: os cinco primeiros livros da Bíblia («Pentateuco»). Um âmbito primordial, antigo e importantíssimo, de educação e instrução é a família. No século II antes de Cristo, em Israel, confirma-se também a existência de outro ambiente educativo dedicado à transmissão do saber: a escola. A dimensão histórica da fé bíblica e o caráter relacional do Deus bíblico — Deus que se liga em aliança ao povo de Israel — dão vida a uma transmissão da fé que tem lugar segundo uma modalidade narrativa e dialógica, e não impessoal nem doutrinal, abstratamente teológica ou dogmática. É uma modalidade que envolve o narrador e o destinatário da narração, ambos «encerrados» na narração e tornados participantes da história narrada. Leitura pública da Tora e ensinamento dos seus conteúdos de viva voz, nos santuários e em família, são os meios didáticos deste ensinamento que também é transmissão da fé e inserção numa história familiar e do povo. Tradição oral, ensinamento de viva voz, leitura pública, narração: estas formas de transmissão da vontade do Senhor abrangem todos, também os analfabetos, aqueles que não sabem ou não podem ler. O Novo Testamento apresenta o próprio Jesus como «mestre». A atividade de ensino de Jesus, que se dirige a doutos e ignorantes, envolve a sua pessoa, assumindo um aspeto de testemunho. Jesus ensina com as palavras, com os gestos, com o seu modo de viver, com a sua pessoa. A sua pessoa é ensinamento, ou antes, é revelação de Deus. Jesus Cristo é o sinal do Pai, «o sacramento de Deus»: «Quem me vê, vê o Pai» (João 14, 9). O ensinamento disposto por Jesus para os crentes de todos os tempos é radical: Jesus ensina a viver. Ele apareceu para «nos ensinar a viver neste mundo» (Tito 2, 12).

Conhecer as Escrituras

A atividade de ensinamento (que não deve ser confundida com o primeiro anúncio destinado ao não-crente) é ainda mais necessária hoje, dada a situação de ignorância acerca das coisas da fé partilhada pela maior parte dos próprios crentes praticantes, para não falar do analfabetismo em relação à fé das gerações mais jovens. Há que colocar no centro da ação pastoral o problema da ignorância dos crentes. A fé requer a aquisição de conhecimentos, o aprofundamento, caso contrário, fica estéril. O conhecimento cristão, conhecimento não intelectualista mas dinâmico e vital, que se torna amor e participação concreta na vida do Senhor Jesus Cristo, revela a maturidade da consciência cristã, tornando o crente capaz de dar razão da esperança que o habita e de dar testemunho crível do Evangelho. Isso requer o conhecimento das Escrituras e, sobretudo, dos Evangelhos, que transmitem o conhecimento de Jesus: com efeito, «a ignorância das Escrituras é ignorância de Cristo». Transmitir a fé também significa transmitir as Escrituras e dar a possibilidade de lê-las, escutá-las, meditá-las e rezar com elas na fé e no Espírito Santo, e fornecer os instrumentos para isso. O conhecimento necessário no espaço edesial é espiritual, obra do Espírito Santo, que interioriza no crente a memória de Cristo e o leva a assemelhar-se com Ele. E é um conhecimento não individualista, mas pessoal e comunitário, que encontra na liturgia um momento decisivo, que constrói e nutre a comunidade cristã. É certo que, na sociedade pós-tradicional em que vivemos, a transmissão da fé é particularmente problemática: cada gesto e cada palavra da fé devem ser remotivados, hoje, para não parecerem insignificantes. Trata-se de redescobrir que ensinar significa fazer e dar sinais, transmitir símbolos mediante os quais as pessoas se possam orientar na vida, tornar-se «barqueiros», indicar a herança a receber, apontar um caminho e não impor uma lei. O problema também é político e, em muitos países, diz respeito à alfabetização, elemento fundamental de toda a remissão social e de todo o acesso à dignidade humana, e que concerne ainda a nossa sociedade, de modo particular a sua capacidade de educar: com efeito, com base na educação avalia-se o nosso amor pelo mundo e o sentido da responsabilidade pelas gerações futuras. Como bem entendera o padre Lorenzo Milani, que do dar a palavra aos analfabetos e do dotar de recursos da linguagem quem disso carecia fez o programa da sua «educação civil» e da sua «escola popular».

Precisamos de uma fé madura, 
capaz de fazer frente às dificuldades. 
Um escasso conhecimento da fé 
sempre foi o melhor terreno 
para a superstição e para o erro.
Walter Kasper


© Laboratório da fé, 2014 
Este texto foi elaborado a partir da obra de Luciano Manicardi intitulada «A caridade dá que fazer: Redescobrindo a atualidade das ‘obras de misericórdia’» (páginas 77 a 89 e 159 a 167) publicada em português pelas edições Paulinas





Laboratório da fé, 2014
Postado por Marcelino Paulo Ferreira | 1.12.14 | Sem comentários
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