VOLTA A OLHAR O MUNDO PELA PRIMEIRA VEZ
A Liturgia não é uma mera repetição de rubricas que recordam a progressiva revelação de Deus e a sua ação salvadora ao longo dos tempos. Como acontece em cada dia da nossa existência, também a celebração litúrgica nos abre à novidade do presente, um presente de graça sempre nova e renovada. O Advento também é para nós, hoje, homens e mulheres do século vinte e um, com a vantagem de já sabermos que a espera teve o seu pleno cumprimento em Jesus Cristo. Sabemos que Deus se implicou na vida concreta da Humanidade, representada pelo povo de Israel, no Antigo Testamento. E continua a implicar-se, hoje, na vida de cada homem e mulher. Os acontecimentos históricos não estão fora do olhar de Deus e da sua maneira amorosa de agir. Por isso, no Advento, é preciso assinalar não só a esperança da vinda do Messias ao povo de Israel do Antigo Testamento, mas a sua vinda ao nosso momento atual. Neste sentido, propomos um Advento sob o signo do «olhar», mergulhados na «mística do instante»: «A mística do instante pede para tomarmos (mais) a sério a nossa humanidade como narrativa de Deus que ‘vive neste mundo’» (José Tolentino Mendonça).
Advento: volta a olhar o mundo pela primeira vez
Isaías evoca a presença contínua de Deus na história: recorda que Deus já «desceu» em outras ocasiões históricas do povo de Israel; e continua a fazê-lo, a «descer» à nossa vida. A história humana tem como primeiro protagonista o próprio Deus; embora se trate dum protagonismo partilhado, pois Deus quer precisar do ser humano para exercer o seu protagonismo. Deus quer fazer-se — se é permitido dizê-lo assim — cada vez mais próximo da nossa vida; e nada nem ninguém o fará mudar de atitude.O profeta reconhece a iniciativa primordial e única de Deus: «Nunca […] os olhos viram que um Deus, além de Vós, fizesse tanto em favor dos que n’Ele esperam» (Isaías 63, 3). Então, o Advento dá-nos a esperança de que os factos fundamentais da memória de Israel serão novamente atualizados no presente. Assim, desafia-nos a centrar o nosso olhar em tudo o que de bom e de belo Deus continua a fazer no mundo, quando as pessoas se deixam guiar pelo seu Espírito Santo. Por isso, o Advento é também tempo de balanço: olho para o que fiz de bom e de belo ao longo do ano; procuro descobrir como Deus se fez e se faz presente nas minhas vivências concretas, nos instantes que me são dados viver. «Um exercício espiritual importante é percorrermos nós, com o nosso olhar, a criação, a nossa e a do mundo, ao encontro do olhar maravilhado de Deus». Pode ser necessário mudar de atitude, mudar de espiritualidade, mudar de vida, mudar de «lente», «olhar a porta entreaberta do instante».
Chegou a hora de concentrar os nossos esforços no sentido de experienciar «uma espiritualidade que encare os sentidos como caminho que conduz e porta que nos abre ao encontro de Deus». E mais: «Se acreditamos que é com olhos de amor que Deus nos olha, então confiaremos também que os seus olhos partem em busca dos nossos». «E pensar naquilo que Marcel Proust escreveu: ‘A verdadeira viagem de descoberta não consiste em buscar novas paisagens, mas em adquirir um novo olhar’». Quando o ser humano «volta a olhar o mundo pela primeira vez» fica a «saber de que cor são os sonhos de Deus».
Laboratório da Fé vivida
«A fé é uma grande escola do olhar». E «a vida é o imenso laboratório para a atenção, a sensibilidade e o espanto que nos permite reconhecer em cada instante, por mais precário e escasso que seja, a reverberação de uma fantástica presença: os passos do próprio Deus». A fé vivida é uma questão de abrir os olhos. «Isto de abrir os olhos para a vida é muito importante. E é muito raro. […] Ora, é preciso abrir os olhos para que o medo dê lugar à alegria» em viver a fé. Além disso, «a visão torna o mundo uma janela, mas percebemos que há outras dimensões igualmente fulcrais do olhar. A começar pela dimensão da reflexividade [...]. O olhar é fundamental para celebrarmos o encontro connosco próprios e com os outros. [...] De modo semelhante, o olhar é essencial para nos lançarmos na aventura da procura de sentido para a vida». Em cada semana, propomos orientar o nosso olhar ao ritmo de uma palavra: descoberta, pão, alegria, encontro. «Como se opera em nós a transformação do olhar? — é o que deveríamos perguntar» ao longo deste Advento.© Laboratório da fé, 2014