ANO CRISTÃO
A Editora Paulus traduziu e publicou (em 2009) uma obra italiana com comentários aos textos bíblicos proclamados nas celebrações eucarísticas. No volume dedicado à Quaresma e Páscoa («Leccionário Comentado. Regenerados pela Palavra de Deus. Quaresma - Páscoa — organização de Giuseppe Casarin) faz uma breve apresentação da Quaresma e dos textos bíblicos propostos na Liturgia. A coleção está estruturada à maneira da «lectio divina», acompanhando progressivamente todo o ano litúrgico nos seus tempos fortes, nas suas festas mas também nos dias feriais, todas as vezes que a comunidade cristã é convocada para celebrar a Cristo presente na Palavra e no Pão eucarístico.
Seria impróprio considerar a Quaresma fora da sua relação com a Páscoa. Ela nasceu precisamente com a finalidade de favorecer uma participação mais profunda e mais intensa no mistério pascal de Cristo, centro da fé e da vida do cristão. É a resposta ao convite de Paulo a celebrar a Páscoa «não com o velho fermento, nem com o fermento de malícia e perversidade, mas com pães sem fermento, isto é, na sinceridade e na verdade» (1Coríntios 5, 8). Um mistério tão grande precisa de longa e intensa preparação. Para além de que, desde outros tempos, dias ou anos, nos quais o número quarenta indica um tempo de prova antes de uma vitória final (cf. Génesis 8, 6: a espera de Noé depois do dilúvio; Êxodo 24, 18 e 34, 28: a permanência de Moisés no monte; Josué 5, 6: os quarenta anos de permanência de Israel no deserto; 1Samuel 17, 16: o desafio de Golias a Israel; 1Reis 19, 8: Elias caminha durante quarenta dias; Jonas 3, 4: ainda quarenta dias e Nínive será destruída; etc.), o tempo litúrgico da Quaresma recebe a sua medida de quarenta dias passados por Jesus no deserto antes de começar a Sua missão de evangelização. Uma medida que evidentemente não é só quantitativa, mas também qualitativa: o tempo da prova («tentação») de Jesus remete o discípulo, no momento «penoso» da sua sequela, para a vertente de sofrimento do mistério pascal de Jesus, precisamente a «Paixão» na qual a única possibilidade de ultrapassar a prova consiste em confiar na Palavra de Deus, como o próprio Cristo que responde à tentação da fé com o triplo «a Escritura diz» (Mateus 4, 4.6.10) da Palavra de Deus. Com o seu apelo à conversão, a Quaresma não esgota em si mesma o seu significado e a sua missão, mas torna-se o «tempo exemplar» para todo o ano: ou seja, fornece as linhas de fundo para uma vida cristã que, inspirando-se na Páscoa do Senhor, se coloca em atitude de «conversão permanente».
É preciso muito cuidado, então, para não isolar a Quaresma da Páscoa. Se o mistério pascal é o centro da fé e da vida do cristão, a Quaresma não deve ser entendida simplesmente como um tempo de preparação para a Páscoa. Ela é uma dimensão do Tempo Pascal que no entanto deve ser enquadrada numa perspetiva mais ampla: a dos noventa dias que incluem também os cinquenta dias da Páscoa numa continuidade que abrange preparação, cume, e ainda continuação e aprofundamento. Observa-se, pelo contrário, que a práxis pastoral amiúde gasta muito tempo na preparação (Quaresma), esquecendo quase o seguimento e o aprofundamento (Tempo Pascal). Tempo de Quaresma e Tempo Pascal não são simplesmente dois tempos litúrgicos juntos, mas formam uma unidade litúrgica orgânica, são como as duas vertentes do único mistério celebrado e vivido pela comunidade crente e pelo discípulo do Senhor. Em cada um destes dois tempos acentua-se um dos dois grandes aspetos, necessários e interdependentes, do mistério pascal de morte e ressurreição. Na Quaresma, é evidenciada e vivida a componente «negativa» do mistério pascal, a Paixão, sem todavia esquecer o mistério pascal na sua globalidade. No Tempo Pascal é a outra dimensão, a dimensão positiva da «Ressurreição», da vida nova do Ressuscitado participada aos crentes, que é posta em evidência. Na Quaresma é evidenciado o aspeto da provação e da conversão da existência cristã; no Tempo Pascal é evidenciado o seu carácter pascal e pentecostal.
Enquanto preparação para a celebração da Páscoa, a Quaresma deve ser considerada um tempo de graça no qual os fiéis, mediante a escuta mais frequente da Palavra de Deus (porque «não só de pão vive o homem, mas de toda a palavra que sai da boca de Deus» é já a mensagem do primeiro domingo), são convidados a redescobrir a sua dignidade de filhos de Deus e a sua libertação efetuada pela Páscoa de Cristo, ou seja, a graça do Batismo (de facto, é mediante o Batismo que somos inseridos no mistério pascal de Cristo e portanto tornados filhos no Filho e libertados da escravidão do pecado). O novo Povo de Deus está a caminho para a Terra Prometida do mundo redimido por Cristo [...].
Toda a vida do cristão é sempre uma caminhada na luz da Páscoa e em direção à luz da Páscoa, por isso requer um dinamismo de conversão permanente: a Quaresma, sinal sacramental da nossa conversão, torna-se momento de referência e de reabastecimento necessário para todas as estações da vida do cristão.
A Liturgia da Palavra
A peculiaridade da Liturgia da Palavra no Tempo de Quaresma é que, junto com a costumada leitura «horizontal» das perícopes bíblicas dominicais (a que liga as leituras no interior de cada uma das celebrações), torna-se possível também uma leitura «vertical», ou seja, que deveria permitir-nos compreender o desenrolar progressivo de uma temática de domingo a domingo.Os seis domingos do Tempo da Quaresma podem dividir-se em dois grupos, concluídos no último domingo, o Domingo de Ramos, que introduz imediatamente (com os primeiros dias da Semana Santa) nas celebrações pascais. Os primeiros dois domingos, em todos os três ciclos, estão baseados respectivamente nas tentações de Jesus no deserto e na sua Transfiguração. A atenção do crente é portanto endereçada, desde o início do tempo litúrgico, para a consideração das duas vertentes do mistério pascal de Cristo: o da Paixão no primeiro domingo, o da vitória gloriosa no segundo. Os três domingos seguintes, pelo contrário, têm características diversas nos três ciclos. O domingo conclusivo, «Domingo de Ramos da Paixão do Senhor», finalmente, é assinalado como o único domingo do ano em que se faz memória solene da Paixão do Senhor.
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No que diz respeito à primeira leitura notemos a preferência dada aos Livros Históricos do Antigo Testamento, em particular ao Génesis e ao Êxodo, nos primeiros quatro domingos,,e aos Livros Proféticos no quinto. No Domingo de Ramos, depois, lê-se Isaías nos três ciclos. [...]
A primeira leitura [Ano A] foi escolhida com a finalidade de apresentar os momentos mais significativos da História da Salvação do Antigo Testamento. Sucedem-se os episódios da Criação, do chamamento de Abraão, da caminhada do povo no deserto, da escolha de David e do regresso do Povo (expresso em termos de ressurreição) do Exílio. Infelizmente, precisamente por causa da progressão «vertical», não resulta sempre claramente a relação com o Evangelho.
© Mario Chesi | Editora Paulus
© Adaptação de Laboratório da fé, 2014
A utilização ou publicação deste texto precisa da prévia autorização do editor
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