ANO CRISTÃO
O Secretariado de Liturgia da diocese do Porto, num artigo do jornal «Voz Portucalense» (27 de novembro de 2013) apresenta uma reflexão sobre a representação do Ano Litúrgico através de um círculo. E concluiu que não nos podemos fixar no «círculo», mas ser capazes de ver no Ano Litúrgico a representação do «tempo bíblico: história da salvação constelada de intervenções divinas que fazem do 'hoje' dos celebrantes o 'momento favorável'» para fazer acontecer a novidade da graça. A representação do círculo «tem algum interesse didático», mas é necessário transformá-lo numa «espiral ascendente, de tal forma que no início de um novo ano não pareça que se voltou ao ponto de partida do ano anterior».
[...] Certas representações esquemáticas do ano litúrgico assumem, por razões de clareza e pedagogia, a configuração de um círculo em que o fim de um ciclo coincide com o início de outro, num incessante retorno do mesmo mistério, das mesmas festas, em circuito fechado. É o «círculo do ano», como se lê na designação de antigos livros litúrgicos. Mas, então, voltamos ao mito grego do «eterno retorno» perdendo a conceção bíblica do tempo com um «princípio» e uma meta «escatológica»? Regressa «Cronos», a divindade pagã que devorava os próprios filhos e o tempo deixa de ser o âmbito das manifestações e intervenções de um Deus transcendente que acompanha o povo em êxodo, num processo dinâmico de libertação sempre aberto, do Nilo ao Jordão, de Páscoa em Páscoa, numa história de salvação que chega à sua plenitude no Dia do Senhor em que o tempo desagua na eternidade ou, melhor, no Eterno? De modo algum! O tempo litúrgico continua a ser o tempo bíblico: história da salvação constelada de intervenções divinas que fazem do «hoje» dos celebrantes o «momento favorável» («kairós) da graça sempre inédita e indedutível. Veja-se, como ilustrativo desta visão, o rito da preparação do círio na Vigília Pascal.
A imagem do círculo com que representamos o ano litúrgico vale o que vale. Tem algum interesse didático na apresentação esquemática dos dias e tempos celebrativos no seu suceder-se: nas camadas interiores do círculo articula-se a celebração do mistério de Cristo ao longo do ano com o Ciclo da Encarnação (Advento, Natal/Epifania), Ciclo da Redenção (Quaresma, Tríduo Pascal, Tempo Pascal), intercalados por períodos mais ou menos longos de «Tempo Comum» em função da data móvel da Páscoa (domingo subsequente à lua cheia do equinócio da Primavera); e, na camada exterior do círculo, a sucessão dos dias e dos meses, segundo o calendário solar, com uma teia mais ou menos densa de memórias, festas e solenidades do «Santoral» a articular com o «próprio do tempo» segundo regras claras de precedência em que a primazia pertence a este. Para recuperar a compreensão bíblica do tempo temos, porém, de sair do espaço bidimensional e transformar o círculo numa linha helicoidal ou espiral ascendente de tal forma que no início de um novo ano não pareça que se voltou ao ponto de partida do ano anterior, qual «pescadinha de rabo na boca», como se o ano findo tivesse decorrido em vão ou tivesse havido uma falsa partida e tivéssemos todos de voltar sempre à mesma linha de partida.
Vista deste modo, a nossa vida é antes uma escalada ao monte de Sião em que a estrada, para subir de forma mais viável a íngreme encosta, vai contornando a montanha, perímetro após perímetro, mas a uma cota progressivamente mais elevada, cada vez mais perto do cume. Em cada ano voltamos a contornar os mesmos lados da encosta, mas a paisagem, aparentemente igual, vai ganhando horizonte, amplitude. Ouvimos as mesmas leituras, rezamos as mesmas preces que são como que as torrentes que desse lado da colina jorram em direção ao vale ou ao oceano. Mas se o arroio é o mesmo, a água é sempre outra: nova, fresca e vivificante. Assim devíamos compreender cada Ano Litúrgico, concretização do Ano da Graça. Assim o deveríamos viver. [...]