NOVEMBRO: MÊS DA ESCATOLOGIA
O mês de novembro, no coração do outono, remete-nos para as coisas últimas da vida, o final dos tempos. Ao mesmo tempo, coincide com o final do Ano Litúrgico (Ano Cristão), cujas propostas incidem nas referências à morte, ao final dos tempos (na Igreja, usa-se o termo «escatologia»), à esperança na ressurreição, à vida eterna. Os primeiros dias do mês de novembro (Todos os Santos e Fiéis Defuntos) dão o mote para uma renovada reflexão sobre estas temáticas. Neste contexto, também associado ao encerramento do Ano da Fé (24 de novembro de 2013), propomos a expressão do «Credo niceno-constantinopolitano»: «Espero a ressurreição dos mortos e a vida do mundo que há de vir». Esta iniciativa tem ainda como ponto de referência a conferência do Padre Doutor José Tolentino Mendonça, às 21h do dia 21 de novembro de 2013, no Auditório Vita, Braga.
Apresentamos, agora, a reflexão de José Tolentino Mendonça publicada no «Expresso» de 2 de novembro de 2013:
É tão estranho que entre a avalancha de saberes úteis e inúteis que acumulamos uma vida inteira não esteja este: aprender a morrer. A contemporaneidade fez da morte o seu tabu, o mais temido e ocultado, e deixa-nos completamente impreparados para enfrentar a naturalidade com que a vida a abraça. A morte surge como uma interrupção, um interdito de linguagem mais inconveniente do que uma asneira, uma dor para viver às escondidas, uma intromissão com a qual em nenhum momento contámos. Sobre a morte não sabemos o que dizer, nem o que pensar. E isso constitui, de facto, uma falta enorme.
Montaigne dizia que não morremos por estar doentes, morremos por estar vivos. Talvez seja por aí que devamos recomeçar, religando o que hoje parece tão inconciliável. A morte é uma expressão da vida. A mais enigmática, impenetrável e intraduzível das expressões, certamente. Mas é no interior da vida que temos de compreendê-la. Colhendo o seguinte: ao recolocar-nos dramaticamente perante o mistério que somos, a morte como que resgata a própria existência. É que podemos levar uma vida inteira sem pensar no que ela é: esta surge-nos como um dado óbvio, esventrado de qualquer interrogação, uma certeza assente, sem mais. E não é assim. A morte pode representar no itinerário pessoal, e nos nossos caminhos entrecruzados e comuns, a oportunidade para olharmos a vida mais profundamente. A vida não é só este tráfico de verbos ativos, esta marcha emparedada e sonâmbula, este vogar entre deve e haver, esta contabilidade no lugar da metafísica A vida não é só isto. A morte amplia-a. Revela-lhe um fundo que não vemos. São, por isso, tão necessários os versos de Rilke:
«Senhor, dá a cada um a sua própria morte.
Um morrer que venha dessa vida
que reparte por nós amor, sentido e aflição.
Porque nós somos apenas a casca e a folha
A grande morte, que cada um traz em si,
é o fruto à volta do qual tudo gira.»
Um acontecimento editorial deste outono é a publicação dos escritos de Cicely Saunders, a médica que fundou a primeira unidade de cuidados paliativos, uma das mais fantásticas inovações da saúde no século XX. O livro chama-se «Velai Comigo», tem pouco mais do que setenta páginas e merecia bem ser lido por todos. O que me marcou mais na leitura que fiz foi uma frase repetida continuamente pela autora: «temos de aprender». Temos de aprender a estar com os outros quando chegar o seu momento, desenvolvendo capacidades até então negligenciadas. Temos de aprender a cuidar da dor e a minorá-la, mas não só com comprimidos: também com o coração, com a presença, com os gestos silenciosos, o respeito, com uma expectativa de coragem. Os doentes não estão à procura de indulgência. Temos de aprender a embalar a fragilidade, a dos outros e a nossa própria, ajudar cada um a reencontrar-se com as coisas e com as memórias certas, a não desesperar, a encontrar um fio de sentido no que está a viver, por ínfimo e trémulo que seja. Temos de aprender a ser suporte, temos de querer eficiência técnica mas também compaixão, temos de reconhecer o valor de um sorriso, ainda que imperfeito, em certas horas extremas. À beira do fim há sempre tanta coisa que começa.
É tão estranho que entre a avalancha de saberes úteis e inúteis que acumulamos uma vida inteira não esteja este: aprender a morrer. A contemporaneidade fez da morte o seu tabu, o mais temido e ocultado, e deixa-nos completamente impreparados para enfrentar a naturalidade com que a vida a abraça. A morte surge como uma interrupção, um interdito de linguagem mais inconveniente do que uma asneira, uma dor para viver às escondidas, uma intromissão com a qual em nenhum momento contámos. Sobre a morte não sabemos o que dizer, nem o que pensar. E isso constitui, de facto, uma falta enorme.
Montaigne dizia que não morremos por estar doentes, morremos por estar vivos. Talvez seja por aí que devamos recomeçar, religando o que hoje parece tão inconciliável. A morte é uma expressão da vida. A mais enigmática, impenetrável e intraduzível das expressões, certamente. Mas é no interior da vida que temos de compreendê-la. Colhendo o seguinte: ao recolocar-nos dramaticamente perante o mistério que somos, a morte como que resgata a própria existência. É que podemos levar uma vida inteira sem pensar no que ela é: esta surge-nos como um dado óbvio, esventrado de qualquer interrogação, uma certeza assente, sem mais. E não é assim. A morte pode representar no itinerário pessoal, e nos nossos caminhos entrecruzados e comuns, a oportunidade para olharmos a vida mais profundamente. A vida não é só este tráfico de verbos ativos, esta marcha emparedada e sonâmbula, este vogar entre deve e haver, esta contabilidade no lugar da metafísica A vida não é só isto. A morte amplia-a. Revela-lhe um fundo que não vemos. São, por isso, tão necessários os versos de Rilke:
«Senhor, dá a cada um a sua própria morte.
Um morrer que venha dessa vida
que reparte por nós amor, sentido e aflição.
Porque nós somos apenas a casca e a folha
A grande morte, que cada um traz em si,
é o fruto à volta do qual tudo gira.»
Um acontecimento editorial deste outono é a publicação dos escritos de Cicely Saunders, a médica que fundou a primeira unidade de cuidados paliativos, uma das mais fantásticas inovações da saúde no século XX. O livro chama-se «Velai Comigo», tem pouco mais do que setenta páginas e merecia bem ser lido por todos. O que me marcou mais na leitura que fiz foi uma frase repetida continuamente pela autora: «temos de aprender». Temos de aprender a estar com os outros quando chegar o seu momento, desenvolvendo capacidades até então negligenciadas. Temos de aprender a cuidar da dor e a minorá-la, mas não só com comprimidos: também com o coração, com a presença, com os gestos silenciosos, o respeito, com uma expectativa de coragem. Os doentes não estão à procura de indulgência. Temos de aprender a embalar a fragilidade, a dos outros e a nossa própria, ajudar cada um a reencontrar-se com as coisas e com as memórias certas, a não desesperar, a encontrar um fio de sentido no que está a viver, por ínfimo e trémulo que seja. Temos de aprender a ser suporte, temos de querer eficiência técnica mas também compaixão, temos de reconhecer o valor de um sorriso, ainda que imperfeito, em certas horas extremas. À beira do fim há sempre tanta coisa que começa.
Uma das lembranças que me são mais queridas provém, por exemplo, do último internamento do meu pai. Recordo-me de, por dias e dias, andar de mão dada com ele, muito devagarinho, no grande corredor do hospital. Eu passava-lhe toda a força que podia com a minha mão. Mas a sua mão era maior do que a minha. E sei que ainda é.