PREPARAR O DOMINGO: décimo primeiro domingo
16 DE JUNHO DE 2013A construção de Jesus — Uma leitura narrativa de Lucas 7, 36-50
José Tolentino Mendonça publicou em livro a dissertação doutoral que aborda uma parte do evangelho do décimo primeiro domingo (Ano C): «A construção de Jesus. Uma leitura narrativa de Lucas 7, 36-50», Assírio e Alvim, Lisboa 2004.
Apresentamos alguns apontamentos sobre os personagens (retirados das páginas 86 a 94): um dos fariseus de nome Simão, Jesus, a intrusa inominada, os comensais.
Apresentamos alguns apontamentos sobre os personagens (retirados das páginas 86 a 94): um dos fariseus de nome Simão, Jesus, a intrusa inominada, os comensais.
Um dos fariseus de nome Simão
A informação inicial que a narrativa nos presta sobre o personagem é que se trata de um dos fariseus.
Os fariseus surgem na narrativa evangélica já no capítulo 5, ao lado dos doutores da Lei, e vão-se desenhando como um bloco oponente a Jesus.
Mas alguns elementos do texto lucano sugerem também uma proximidade entre Jesus e os fariseus, pelo menos maior do que a que se pode observar em Marcos ou Mateus. Os pastos com os fariseus (Lucas 7, 36-50; 11, 37-54; 14, 1-24) estão ausentes dos outros Sinópticos, e esses, se tivermos em conta o significado concedido pelo movimento farisaico às refeições, representam, no mínimo, que eles aceitavam os contactos com Jesus e tinham para com ele curiosidade e atenções.
Normalmente os fariseus deslocavam-se ao campo de Jesus, fosse lugar público do ensinamento (Lucas 5, 17); a casa de Levi (5, 30); as plantações (6, 2) ou a sinagoga (6, 7). Este fariseu estabelece um movimento contrário, permitindo que Jesus penetre no seu território. Segue, depois, atentamente a peripécia protagonizada pela pecadora, que se intromete na refeição que ele promove. Formula aí um juízo de distanciamento, instalando-se, porém, numa duplicidade pragmática: se no seu interior já julgou Jesus por causa da mulher, no seu registo exterior continua impávido. A imagem do personagem costura-se assim de uma ambiguidade: não expõe traços hostis (mesmo depois do acontecido trata Jesus por 'mestre'; intervém quando solicitado por Jesus), mas também já sabe que, perante os dados de que parte, não pode aderir ao seu hóspede.
Dá-se uma reviravolta na narrativa quando Jesus toma a palavra e revela a verdade profunda do fariseu, a começar pela do seu nome, Simão (versículo 40), informação que, até aqui, não tinha sido referida. No paralelo estabelecido entre ele e a mulher pecadora, Jesus faz saber que o silêncio do fariseu, a sua abstenção de gestos não são atitudes ordinárias ou insignificantes, mas correspondem a uma estratégia de resguardo face a Jesus e que essa estratégia está equivocada, pois assenta em premissas que o próprio raconto se encarregará de relativizar.
Jesus
Em 7, 36-50, o personagem Jesus é verdadeiramente o centro da narração, uma espécie de íman que faz confluir em si todos os eixos factuais. Se os outros dois personagens, o fariseu e a mulher, alternam um tempo de exposição com um tempo de sombra (nos versículos 37-38 a mulher está exposta e o fariseu está na sombra; nos versículos 40-42 está ausente a mulher e o fariseu presente), Jesus, directa ou indirectamente, atravessa todos os momentos do episódio. A sua entrada em casa do fariseu assinala o início da acção. Ele é o motivo declarado da vinda inusitada da mulher pecadora àquele lugar e é o alvo exclusivo da acção que ela desempenha. A sua passividade provoca o fariseu, que discorre não sobre a mulher, mas sobre a identidade do seu convidado. Jesus é um personagem omnisciente. Para os outros personagens as informações chegam-nos através do narrador. Jesus, porém, inaugura o discurso directo e responde em alta voz ao que os outros personagens calam.
O fariseu, por exemplo, fica prisioneiro das premissas iniciais para o seu julgamento da realidade. Jesus não julga apenas os factos, possibilita também a sua transformação. O seu espaço de intervenção é o mais amplo: ele conhece elementos que os outros personagens ignoram, conta uma história que, aparentemente, se subtrai ao contexto, mas que afinal o encena, contorna os obstáculos que aprisionam a situação e recria, de novo, uma possibilidade para o imprevisto. Retorna ao passado da narração e desvela um significado que abala o presente. Explica. Resolve. A verdade é revelada progressivamente não pelo narrador ou por outro personagem, mas pelo próprio Jesus.
Que Jesus fosse considerado um mestre, isso não despertava oposições. Jesus é frequentemente interpelado a partir do papel social de mestre que lhe era reconhecido tanto pelos mediadores oficiais do judaísmo do seu tempo.
O nó do problema é outro, contudo, como nos permite pensar o raconto. A primeira questão que se colocava sobre Jesus era a de saber se ele era um profeta (versículo 39). Mas no quadro final, ao versículo 49, os comensais já estão preocupados com outra realidade: «Quem é este que até perdoa pecados?». Entre as duas questões há uma desproporção semântica que mostra como, na sua brevidade, o texto nos conduziu a um patamar realmente novo. Porque uma coisa é ser um profeta, houve tantos na tradição de Israel, outra é reclamar o poder do perdão dos pecados.
Esta história lucana reflecte o mistério da inter-relação de Deus e Jesus para definir, a partir daí, a identidade daquele hóspede. Ele é, de facto, o protagonista do episódio. A luz que o texto transporta é para que o possamos ver melhor.
A intrusa inominada
Um personagem feminino. O terceiro Evangelho é aquele que guarda mais relatos de mulheres: é, por exemplo, o único que conta a história de Isabel (1, 5-25), Maria (1, 26-56), Ana (2, 36-38), a viúva de Naim (7, 11-17), Maria Madalena, Joana, Susana e as outras mulheres que seguiam Jesus (8, 1-3), Marta e Maria (10, 38-42), a mulher encurvada (13, 10-17), a mulher que procura a moeda perdida (15, 8-10), a viúva insistente (18, 1-8) e as mulheres de Jerusalém que choram atrás da cruz (23, 27-31). Para lá daquelas mulheres cuja referência partilha com os outros Sinópticos. Para um leitor de Lucas não é, portanto, estranho que uma mulher acorra à procura de Jesus. O encontro com mulheres pontua o caminho de Jesus. E à partida sabe-se que muitas acolhiam a mensagem e a pessoa de Jesus. O aparecimento de uma mulher acaba sempre por trazer um elemento positivo à narração.
O primeiro dado inesperado, por parte do narrador, é o modo como apresenta a mulher: «uma pecadora». Isto é tanto mais espantoso, quando sabemos que Lucas não caracteriza moralmente outros personagens. E, precisamente em relação aos pecadores, ele distingue-se por uma grande delicadeza, feita de silêncio e reserva. Embora alguns comentadores digam tratar-se de uma prostituta isso não nos é referido por Lucas. Afirma-se simplesmente que era uma pecadora da cidade (versículo 37), e tal é reiterado pelo próprio fariseu (versículo 39).
A mulher irrompe pela narrativa. A sua presença não tem, como no caso anterior, a legitimidade de um convite formulado. Nem ela surge por si, mas porque Jesus se encontra à mesa do fariseu. É, portanto, desde o início, um personagem que se coloca na órbita de outro e assume essa dependência.
Uma justificação que o narrador subtilmente avança para a entrada da mulher deve ler-se no destaque concedido ao alabastro, com perfume, que ela traz: por um lado, o objecto oferece à mulher um motivo, uma função; e, por outro, empresta uma espécie de ingrediente novo e específico à narrativa.
Basta comparar 7, 36-50 com 11, 37-54 e 14, 1-24 que mostram sobretudo como Jesus reage às abluções, às disputas dos lugares ou à lógica retributiva que presidia à organização dos banquetes. O perfume como que fornece o móbil que depois a própria trama se encarregará de intrincar: a qualidade do acolhimento a Jesus.
A mulher entra e sai em silêncio, mas o leitor sente que a sua passagem se revestiu de uma eloquência ímpar. Em vez de palavras ela utilizou uma linguagem plástica, talvez mais contundente que a verbal. Representou, como actriz solitária, no palco da casa do fariseu, o seu monólogo ferido: com o seu pranto prolongado, os cabelos a arrastar-se pelo chão do hóspede, numa coreografia humilde e lancinante, os beijos e o perfume que mais ninguém ali teve a preocupação de ofertar a Jesus. A qualidade penitencial do personagem é testemunhada pelo território simbólico em que ela opera, os pés de Jesus, sete vezes referidos, e pela convulsão da sua figura (pois «desatar o seu cabelo em presença do homem era considerado, para uma mulher, uma grande desonra»).
A inominada não cumpre os rituais de hospitalidade ao serviço da casa do fariseu. Em relação ao fariseu ela é uma intrusa, e não uma associada. O seu nexo é com Jesus: os seus gestos, tão distantes, na sua emotividade, daquela delicada indiferença que se requer a quem habitualmente presta, aos hóspedes, esse serviço, são interpretados por Jesus como uma forma de acolhimento na fé: por isso, de pecadora a mulher passará a perdoada. E a transformação do estatuto da mulher derrama um perfume novo não só na perícope, mas pelo próprio Evangelho.
A mulher é a personagem-adjuvante: torna-se o objecto da acção transformadora de Jesus e a sua transformação é colocada ao serviço da revelação de Jesus.
Os comensais
Enquanto os três primeiros personagens que referimos são, evidentemente, protagonistas da narração, construídos com uma primorosa complexidade que visa reforçá-los no seu estatuto de figuras individuais, no final do episódio irrompe este personagem colectivo. Os comensais acompanham supostamente toda a acção, mas sem intervir. Percebemos assim que o convite que o fariseu endereçou a Jesus não foi para uma refeição privada, mas para um repasto na companhia de outras pessoas, e como é provável, pessoas próximas, que mantinham com o fariseu afinidades sociais e religiosas. Isso torna-se claro, por exemplo, na pergunta retórica que lançam, «quem é este que até perdoa pecados?». Os comensais aparecem como personagens secundários que aparentemente não condicionam o desenrolar da intriga, mas cujo papel se revela chave para a representação da acção.
Para concluir...
com um apontamento da página 231:
O Evangelho não aposta na apresentação de conclusões acabadas acerca de Jesus: sugere, antes, o caminho silencioso, árduo e paciente das perguntas. De forma insistente, e num propósito claro de envolver o leitor, vai repetindo que o enigma Jesus está e não está resolvido, para que precisamente este interstício se revele como possibilidade de inscrever uma nova demanda. A narrativa evangélica apresenta-se assim como o limiar de uma história aberta, infinita, onde a cristologia nos remete para a eclesiologia, O seu presente é já o inventário do nosso futuro.
O Evangelho não aposta na apresentação de conclusões acabadas acerca de Jesus: sugere, antes, o caminho silencioso, árduo e paciente das perguntas. De forma insistente, e num propósito claro de envolver o leitor, vai repetindo que o enigma Jesus está e não está resolvido, para que precisamente este interstício se revele como possibilidade de inscrever uma nova demanda. A narrativa evangélica apresenta-se assim como o limiar de uma história aberta, infinita, onde a cristologia nos remete para a eclesiologia, O seu presente é já o inventário do nosso futuro.
© José Tolentino Mendonça