— adaptação da homilia do padre Jacques Fournier —

 

— Evangelho segundo Lucas 4, 21-30

Naquele tempo, Jesus começou a falar na sinagoga de Nazaré, dizendo: «Cumpriu-se hoje mesmo esta passagem da Escritura que acabais de ouvir». Todos davam testemunho em seu favor e se admiravam das palavras cheias de graça que saíam da sua boca. E perguntavam: «Não é este o filho de José?». Jesus disse-lhes: «Por certo Me citareis o ditado: ‘Médico, cura-te a ti mesmo’. Faz também aqui na tua terra o que ouvimos dizer que fizeste em Cafarnaum». E acrescentou: «Em verdade vos digo: Nenhum profeta é bem recebido na sua terra. Em verdade vos digo que havia em Israel muitas viúvas no tempo do profeta Elias, quando o céu se fechou durante três anos e seis meses e houve uma grande fome em toda a terra; contudo, Elias não foi enviado a nenhuma delas, mas a uma viúva de Sarepta, na região da Sidónia. Havia em Israel muitos leprosos no tempo do profeta Eliseu; contudo, nenhum deles foi curado, mas apenas o sírio Naamã». Ao ouvirem estas palavras, todos ficaram furiosos na sinagoga. Levantaram-se, expulsaram Jesus da cidade e levaram-n’O até ao cimo da colina sobre a qual a cidade estava edificada, a fim de O precipitarem dali abaixo. Mas Jesus, passando pelo meio deles, seguiu o seu caminho.

— Aceitar a humildade, confiar na contradição, amar o serviço

A entrada de Jesus na sinagoga de Nazaré está separada das suas tentações no deserto por apenas dois versículos lacónicos: «Impelido pelo Espírito, Jesus voltou para a Galileia e a sua fama propagou-se por toda a região. Ensinava nas sinagogas e todos o elogiavam» (Lucas 4, 14-15).
No último domingo lemos a primeira parte desta narrativa. No dia de Sábado Jesus entra na sinagoga, recebe o livro de Isaías para ler e encontra a passagem onde está escrito: «O Espírito do Senhor está sobre mim».
Jesus proclama — e é aí que começa a leitura deste quarto domingo do Tempo Comum — «Cumpriu-se hoje mesmo esta passagem da Escritura que acabais de ouvir». Esta afirmação suscita reações que vão modificar-se progressivamente. «Todos davam testemunho em seu favor».
O primeiro movimento da assistência é favorável ao reconhecer que ele pronuncia palavras de graça. São Lucas notou-o. Não é o filho de Maria, «cheia de graça»? E Jesus chegou aqui depois de crescer «em sabedoria, em estatura e em graça, diante de Deus e dos homens» (Lucas 2, 52).
Começam depois a aparecer algumas dúvidas: «Todos se admiravam das palavras cheias de graça que saíam da sua boca».
Em poucas frases passamos da aprovação unânime à rejeição, que chega à intenção de o matar. Lendo a maneira como Lucas relatou o acontecimento, é natural considerar a conduta de Jesus como provocadora. Efetivamente ele quer clarificar os pensamentos e as dúvidas dos seus ouvintes.
Após um impulso inicial os habitantes de Nazaré perdem o entusiasmo admirativo em favor de um certo realismo. Como é que o filho de José se pode dizer marcado pela unção do Espírito Santo? E as resistências aumentam. Por quem se toma ele? É um pretensioso, um louco ou um impostor. Mesmo os familiares de Jesus querem dominar as suas palavras, visto que diziam: «Está fora de si» (Marcos 3, 21).
Esta questão vai atravessar todo o Evangelho e chega até hoje. Para muitos dos nossos contemporâneos as verdades essenciais da fé e da boa nova são desconcertantes, e até provocantes.
«Por quem se toma a Igreja?» Ela devia adaptar melhor a sua doutrina e o seu pensamento para estar a par da religiosidade do futuro...
Neste sentido é útil ler S. Lucas à luz das passagens paralelas dos dois outros evangelhos sinópticos. O ceticismo e a ausência de fé dos habitantes de Nazaré exprimem-se mais claramente em S. Mateus (13, 53-58) e S. Marcos (6, 1-6).
S. Lucas dá-lhes outra perspetiva, totalmente derivada de S. Paulo. O Evangelho anunciado por Jesus falhou na sua pátria; por isso deve ser proclamado fora dela. Esta constatação dirige o plano de toda a obra de S. Lucas, incluindo os Atos dos Apóstolos.
Começa com o anúncio de Zacarias no templo de Jerusalém. É assim igualmente nas narrativas da infância de Jesus. Os pobres (pastores) e os pagãos (magos), reconhecem; os poderosos recusam (Herodes e a sua corte). E esta tendência termina com a chegada de Paulo a Roma, ao centro do império pagão (Atos 28, 14). Também lá Isaías é citado, também lá há contradição: «Alguns deixaram-se persuadir com as suas palavras; outros, porém, mantiveram-se incrédulos».
Também nós precisamos de assumir que o pensamento de Deus nunca reunirá a unanimidade. Mas este facto não é razão para nos encerrarmos numa “fortaleza de certezas”. [...]

A universal liberdade de Deus — Aquele que pensa possuir direitos sobre Deus nunca o encontrará. Jesus vai dar aos habitantes de Nazaré dois exemplos de ação divina em favor de pagãos enquanto que o povo de Israel dela parecia excluída, como sucede em Nazaré.
Estes exemplos ligam-se a dois profetas muito unidos entre si: Elias e Eliseu. Eles falaram e agiram não longe da Galileia, no Reino do Norte. Os ouvintes de Jesus não podiam ser mais diretamente atingidos pela evocação dos seus milagres, tanto mais que não podiam duvidar dos seus títulos de profeta, dado que Elias estava assinalado como devendo estar presente nos dias do Messias.
Não seria admissível conceber que Elias e Eliseu eram traidores ou indiferentes ao destino de Israel. Elias promete à mulher de Sarepta um alimento inesgotável «em nome do Senhor Deus de Israel» (1.º livro dos Reis 17, 14). Quando Naaman foi curado da lepra, depois de obedecer à ordem de Eliseu, professa a sua fé: «Reconheço agora que não há outro Deus em toda a Terra, senão o de Israel» (2.º livro dos Reis 5, 15). Ele chega mesmo a guardar um pouco da terra de Isarel para que os sacrifícios que a partir de então oferecerá a Deus sejam legítimos.
Se os dois outros Sinópticos, S. Mateus e S. Lucas, mencionam apenas a falta de fé dos habitantes de Nazaré, S. Lucas faz seguir imediatamente a rejeição de Jesus pela violência, uma tentativa de homicídio. A lógica espiritual do Evangelho é bem iluminada. A recusa da fé encerra nas trevas e só pode provocar o desejo de eliminação daquele que escandaliza. S. Lucas experimentou-o muitas vezes com S. Paulo, durante as viagens missionárias que realizaram.
É Jesus que dá a sua vida ao Pai. Não é suicída. Levam-no «até ao cimo da colina sobre a qual a cidade estava edificada, a fim de O precipitarem dali abaixo», como um Gólgota prematuro fora de Jerusalém. «Mas Jesus, passando pelo meio deles, seguiu o seu caminho.» Ele é livre no meio deles. No evangelho lucano saberemos depressa que este caminho é o que o conduz a Jerusalém, à Paixão e à Ressurreição. A sua morte é um mistério cuja última palavra está em Deus. Jesus «andou de lugar em lugar, fazendo o bem» (Atos 10, 38).

O hoje de Deus — «Hoje» é uma palavra de que S. Lucas gosta muito e que emprega nos grandes momentos da existência de Jesus. «Hoje nasceu-vos um Salvador», canta o anjo aos pastores de Belém. «Hoje serás comigo no paraíso», afirma Jesus crucificado ao ladrão arrependido no último minuto da vida. «Hoje cumpriu-se esta palavra», proclama em Nazaré.
Cristo é o hoje de Deus. E nós, para estarmos com Ele, só temos o hoje entre as nossas mãos. O passado deixou de estar nas nossas mãos e o futuro está nas mãos de Deus. A nostalgia do ontem ou a preocupação do amanhã, a distração da memória ou a agitação dos projetos são “ausência” que nos impede de viver o momento que Deus nos oferece.
Para nós, como para Jesus em Nazaré, cada dia, cada instante, condensa o devir daquilo que somos. «O pão nosso de cada dia nos dai hoje», pediu-nos Jesus para repetir na oração que dirigimos ao “Pai nosso”.

© P. Jacques Fournier, In Conferência Episcopal Francesa
© SNPC (trad.)


Postado por Marcelino Paulo Ferreira | 3.2.13 | Sem comentários
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