— leitura partilhada —
— «A fé ensina-nos a viver neste mundo»,
... cada vez estamos mais distantes da fonte, do original, do acontecimento, porque vivemos na novela dos comentários e das interpretações.
José Tolentino Mendonça
diz José Tolentino Mendonça,
no editorial da Agência Ecclesia,
... cada vez estamos mais distantes da fonte, do original, do acontecimento, porque vivemos na novela dos comentários e das interpretações.
A fé, manifestada em Jesus, ensina-nos a viver neste mundo. O nosso ponto de partida pode ser a passagem da Carta a Tito (Tt 2, 12), onde se diz a propósito de Jesus: “a graça de Deus, fonte de salvação, manifestou-se a todos os homens, ensinando-nos a viver neste mundo”. Esta frase é um desafio, antes de tudo, a tomarmos a sério a humanidade de Jesus como narrativa de Deus e do Homem. Nessa humanidade temos o caminho, a verdade e a vida.
Hoje sentimos a necessidade muito grande de uma fé orientada para a vida. De uma fé que possa constituir uma arte de viver, um laboratório para uma existência autêntica e não apenas para a manutenção de um conjunto de práticas fragmentárias. E precisamos reencontrar ou reinventar, a partir da fé, uma gramática do humano. A fé é um exercício muito concreto de confiança na narrativa de Deus que Jesus nos relata com a sua própria vida, com o seu próprio corpo, os seus gestos, o seu silêncio, a sua história, a poética da sua humanidade. Que se pode concluir então? Que Deus, por exemplo, não bate a uma porta que nós não temos, mas está à nossa porta e bate; que Deus não está numa época passada ou futura simplesmente, mas Deus emerge no nosso presente histórico e é aí (é aqui!) que o encontro com Ele se torna para nós decisivo.
Há um ensaio literário de uma grande autora americana, Susan Sontag, onde ela se levanta contra a interpretação, porque diz,“O mundo encheu-se de comentários, já só vivemos de coisas em segunda mão”. De facto, cada vez estamos mais distantes da fonte, do original, do acontecimento, porque vivemos na novela dos comentários e das interpretações. Há sempre mais uma interpretação que se sobrepõe, à maneira de cascas de cebola. Mas o que é a essência do (nosso) problema? O que é o núcleo fundamental? Isso como que nos escapa. E Sontag dizia que o que temos a fazer é ensinar a ver melhor, a ouvir melhor, a saborear melhor, a tocar melhor. No fundo, a exercitar melhor a nossa humanidade. Uma fé vivida aqui e agora é também uma fé que não se deixa capturar pelo labirinto epidérmico dos meros comentários, mas arrisca-se a construir como uma aventura na ordem do ser.
José Tolentino Mendonça