ANO CRISTÃO
O Secretariado de Liturgia da diocese do Porto, num artigo do jornal «Voz Portucalense» (14 de dezembro de 2011) explica o sentido do tempo de Natal, no contexto do Ano Litúrgico. O texto põe em destaque a relação profunda entre o ciclo de Natal e o ciclo da Páscoa: «De facto, o ciclo da Incarnação (Advento-Natal-Epifania) mais não é do que uma projeção do ciclo pascal (Quaresma-Páscoa-Pentecostes)».
[...] O Ano Litúrgico mais não é do que o desdobramento pelo ciclo de um ano do mistério de Cristo que é sempre integralmente celebrado em cada Eucaristia. Já São Paulo o ensinou à primeira geração cristã: «Todas as vezes que comerdes desse pão e beberdes desse cálice, anunciareis a morte do Senhor até que Ele venha» (1Coríntios 11, 26).
Entretanto, se é verdade que o mistério de Cristo – anunciado, contemplado, celebrado e vivido desde a perspetiva da sua consumação pascal – é sempre uno e íntegro, a perceção e experiência que dele se pode ter é sempre parcial, limitada, fragmentária, sequencial, diacrónica. Por isso a Igreja, na sua solicitude pedagógica e maternal, querendo proporcionar aos seus filhos o alimento sólido e integral de todo o mistério vivificante do Seu Divino Esposo, decidiu parti-lo e reparti-lo em pequeninos. E assim foi organizando progressivamente o ano litúrgico. É o que a Constituição conciliar sobre a Sagrada Liturgia explica no seu número 102: «A santa mãe Igreja considera seu dever celebrar em determinados dias do ano, a memória sagrada da obra de salvação do seu divino Esposo. ... Distribui todo o mistério de Cristo pelo correr do ano, da Encarnação e Nascimento à Ascensão, ao Pentecostes, e à expectativa da feliz esperança e da vinda do Senhor».
Os dois focos a partir dos quais se desenha a elipse do ano litúrgico são o domingo e a páscoa anual. De facto, o «ciclo da Incarnação» (Advento-Natal-Epifania) mais não é do que uma projeção do ciclo pascal (Quaresma-Páscoa-Pentecostes). E não admira porque até a data do Natal parece ter sido calculada a partir da data da Páscoa…
Algo de paralelo parece ter acontecido na redação dos Evangelhos: do núcleo primitivo do anúncio (Paixão, Morte, Ressurreição) vai-se remontando, progressivamente, até ao início da vida pública de Jesus (São Marcos) à infância de Jesus (Mateus e Lucas). E a exegese bíblica mostra-nos como a redação dos relatos evangélicos da infância de Jesus pressupõe a experiência pascal que, de algum modo, antecipa.
A emergência da celebração litúrgica do Natal/Epifania e a sua progressiva importância pastoral está também relacionada com o progresso da reflexão teológica sobre o mistério de Cristo e de Maria, ocasionado pelos debates que levaram à fixação do dogma trinitário e cristológico nos séculos IV e V. É natural que as aquisições dos primeiros concílios ecuménicos (principalmente Niceia, Éfeso e Calcedónia),
tenham enriquecido o conteúdo da celebração litúrgica dos mistérios da Incarnação do Verbo e da Maternidade de Maria. Basta ler a pregação de Santo Agostinho e do papa S. Leão Magno para confirmar isso mesmo.
Na génese deste ciclo também teve o seu peso a Liturgia da Palestina, com celebrações ligadas aos lugares do nascimento de Jesus na Gruta de Belém e na basílica da Natividade. Há notícias antigas de uma celebração comemorativa da natividade nesse lugar. A celebração nesse lugar de uma vigília solene (descrita por Egéria, cerca do ano 383), será determinante na introdução de uma celebração noturna no Natal.
A celebração atual da solenidade do Natal desdobra-se em 4 Missas: Vigília (na tarde de 24 de Dezembro), Meia noite (do galo), Aurora e Dia. Cada uma destas celebrações dispõe de formulários completos com leituras e orações próprias.
A missa da meia-noite inspira-se na tradição que situa em plena noite o nascimento de Jesus. As narrações apócrifas falam do encantamento da natureza e da gruta inundada de luz. Ao mistério do Natal aplica-se o texto de Sabedoria 18, 13-14: «Quando um silêncio profundo tudo envolvia e a noite ia a meio do seu curso, a vossa Palavra omnipotente, ó Deus, desceu do céu, do seu trono real, qual guerreiro invencível». A missa caracteriza-se pela leitura do relato evangélico do nascimento de Jesus (Lucas 2, 1-14). O canto dos anjos, com que termina este trecho, está na génese do Glória, hino que assume uma tonalidade particular neste dia. Na missa da aurora, lê-se a perícope que narra o encontro dos pastores com o Menino. Os textos desenvolvem o simbolismo da luz. Na missa do Dia, anuncia-se o mistério da Incarnação segundo a teologia de S. João (1, 1-18) e Hebreus. Os grandes temas dos textos litúrgicos (Luz, Encontro, Permuta [=
Commercium] admirável, Núpcias, nova Criação…) não limitam o Natal à perspectiva da crónica (o nascimento do Menino Jesus) mas apresentam-no como «Mistério» (manifestação da Salvação), perspetiva já valorizada por São Leão Magno (séc. V).