Carta encíclica sobre a fé [33]
Na vida de Santo Agostinho, encontramos um exemplo significativo deste caminho: a busca da razão, com o seu desejo de verdade e clareza, aparece integrada no horizonte da fé, do qual recebeu uma nova compreensão. Por um lado, acolhe a filosofia grega da luz com a sua insistência na visão: o seu encontro com o neoplatonismo fez-lhe conhecer o paradigma da luz, que desce do alto para iluminar as coisas, tornando-se assim um símbolo de Deus. Desta maneira, Santo Agostinho compreendeu a transcendência divina e descobriu que todas as coisas possuem em si uma transparência, isto é, que podiam refletir a bondade de Deus, o Bem; assim se libertou do maniqueísmo, em que antes vivia, que o inclinava a pensar que o bem e o mal lutassem continuamente entre si, confundindo-se e misturando-se, sem contornos claros. O facto de ter compreendido que Deus é luz deu à sua existência uma nova orientação, a capacidade de reconhecer o mal de que era culpado e voltar-se para o bem.
Mas, por outro lado, na experiência concreta de Agostinho, que ele próprio narra nas suas «Confissões», o momento decisivo no seu caminho de fé não foi uma visão de Deus para além deste mundo, mas a escuta, quando no jardim ouviu uma voz que lhe dizia: «Toma e lê»; ele pegou no tomo com as Cartas de São Paulo, detendo-se no capítulo décimo terceiro da Carta aos Romanos [28]. Temos aqui o Deus pessoal da Bíblia, capaz de falar ao ser humano, descer para viver com ele e acompanhar o seu caminho na história, manifestando-Se no tempo da escuta e da resposta.
Mas, este encontro com o Deus da Palavra não levou Santo Agostinho a rejeitar a luz e a visão, mas integrou ambas as perspetivas, guiado sempre pela revelação do amor de Deus em Jesus. Deste modo, elaborou uma filosofia da luz que reúne em si a reciprocidade própria da palavra e abre um espaço à liberdade própria do olhar para a luz: tal como à palavra corresponde uma resposta livre, assim também a luz encontra como resposta uma imagem que a reflete. Deste modo, associando escuta e visão, Santo Agostinho pôde referir-se à «palavra que resplandece no interior do homem» [29]. A luz torna-se, por assim dizer, a luz de uma palavra, porque é a luz de um Rosto pessoal, uma luz que, ao iluminar-nos, nos chama e quer refletir-se no nosso rosto para resplandecer a partir do nosso íntimo. Por outro lado, o desejo da visão do todo, e não apenas dos fragmentos da história, continua presente e cumprir-se-á no fim, quando o ser humano — como diz o Santo de Hipona — poderá ver e amar [30]; e isto, não por ser capaz de possuir a luz toda, já que esta será sempre inexaurível, mas por entrar, todo inteiro, na luz.
[28] Cf. Confessiones, VIII, 12, 29: PL 32, 762
[29] De Trinitate, XV, 11, 20: PL 42, 1071
[30] Cf. De civitate Dei, XXII, 30, 5: PL 41, 804
A luz da fé [Carta Encíclica sobre a fé - «Lumen Fidei»]
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Refletir... saborear
- A vida de Santo Agostinho é exemplo de relação entre razão e fé
- Acolhe a filosofia grega da luz (visão): neoplatonismo
- Aprendeu que todas as coisas podem refletir a bondade de Deus: o Bem
- A compreensão de que Deus é luz deu uma nova orientação à sua vida
- O momento decisivo da sua vida foi um momento de «escuta»
- Aprendeu a conhecer o Deus pessoal da Bíblia, que fala ao ser humano
- Aprendeu a conhecer o Deus pessoal da Bíblia, que «desce» para estar com o ser humano
- Aprendeu a conhecer o Deus pessoal da Bíblia, que acompanha o ser humano
- Elaborou uma filosofia da luz que integra a escuta e a visão
- A luz (de um Rosto pessoal) ilumina-nos e reflete-se no nosso rosto
- No fim dos tempos, o ser humano entrará, todo inteiro, na luz
- Como é que Santo Agostinho relaciona a razão e a fé?
- Quais são as etapas principais da vida de Santo Agostinho?
© Laboratório da fé, 2013