As «chaves» do Concílio


Lumen Gentium — Constituição Dogmática sobre a Igreja


Vaticano II: comunhão eclesial e assembleia eucarística
Os ardentes debates sobre a natureza e a missão da Igreja, que tiveram lugar durante o Concílio, basearam-se de modo considerável sobre o trabalho realizado nas décadas anteriores ao Concílio, para recuperar as antigas ligações bíblicas e patrísticas entre a Eucaristia e a Igreja. Contudo, é significativo que a «Lumen Gentium» quase tenha deixado de adotar a ideia de Corpo Místico como imagem global da Igreja. O Concílio teve o cuidado de limitar as suas afirmações quanto ao significado de «mistério» atestado nas Escrituras e na grande tradição da Igreja, que remonta às primeiras testemunhas [do Evangelho]. A noção da Igreja como mistério ou sinal sacramental de comunhão serve como uma das principais categorias para entender a vocação da Igreja no magistério conciliar. Na sua reflexão sobre a Igreja como Corpo de Cristo, a «Lumen Gentium» faz uma afirmação subtil acerca do corpo eclesial: «Pois, comunicando o seu Espírito, Cristo constitui misteriosamente [ou misticamente] como seu Corpo todos os seus irmãos, chamados de entre todos os povos» (LG 7). O aspeto misterioso ou místico da Igreja deriva de Cristo ressuscitado e do seu Espírito. A humanidade redimida é unida a Cristo de uma forma misteriosa, mas real, na Igreja. Não deriva de nós nem pertence aos membros da Igreja propriamente ditos, mas a Cristo, cuja graça atua continuamente em nós. Essa graça não é nada senão o amor que recebemos quando nos encontramos com Cristo e somos alimentados no mistério do seu Corpo eucarístico.
A visão da Igreja como Corpo de Cristo, segundo o Vaticano II, tem por base o vínculo místico de comunhão com Cristo que une todos aqueles que participam no sacramento da Eucaristia. A noção de «koinonia-communio» é fundamental para a visão conciliar daquilo que nós somos chamados a ser. Essa comunhão íntima com Deus e a unidade que partilhamos uns com os outros realiza-se mais intensamente de cada vez que nos reunimos para celebrar a Eucaristia: o sacramento do Corpo e do Sangue de Cristo transforma-nos no Corpo vivo da Igreja, o Corpo de Cristo ressuscitado no mundo.
Sempre que participamos de forma plena e consciente na ação litúrgica, somos transformados mais plenamente à semelhança de Cristo. A nossa ação de graças e louvor a Deus é uma medida da oblação de nós mesmos aos outros, em amizade e amor. Aprendemos diariamente com Cristo a amar mais e a crescer no amor por Ele e uns pelos outros. É tão fundamental a realização sacramental da Igreja na liturgia que a «Lumen Gentium» se refere à celebração da Eucaristia como «fonte e cume da vida cristã» (LG 11). O povo sacerdotal de Deus oferece esse sacrifício com Cristo. «Assim, fortalecidos pelo corpo de Cristo na comunhão eucarística, manifestam de uma forma concreta aquela unidade do Povo de Deus que esse santíssimo sacramento adequadamente significa e admiravelmente realiza» (LG 11). Na sua ação litúrgica comum e através dela, a comunidade de fé entra em comunhão de amor com Cristo e uns com os outros. A sua vocação é serem agentes dessa mesma comunhão no mundo.
A graça que recebemos no Batismo e que é renovada cada vez que celebramos o mistério pascal na Eucaristia permite-nos crescer à imagem e semelhança de Cristo. Paulo escreve aos Efésios que os inúmeros dons do Espírito são concedidos aos membros da Igreja «para edificação do Corpo de Cristo, até que cheguemos todos à unidade da fé e do conhecimento do Filho de Deus, ao homem adulto, à medida completa da plenitude de Cristo» (4, 12-13). Com um sentido de humildade escatológica, a «Lumen Gentium» reconhece que todos os membros do Corpo de Cristo «devem ser formados à sua semelhança» e reconhece que nesta vida terrena permanecemos «peregrinos numa terra estrangeira, seguindo as suas pegadas na tribulação e na opressão» (LG 7). A alguns poderá ser pedido que suportem verdadeiras injustiças, perseguições, sofrimentos e morte, como testemunhas do seu amor. Contudo, para a maior parte de nós, a chamada a reproduzir o sacrifício de Cristo chega-nos através do nosso encontro com os outros na nossa família, local de trabalho e comunidade. Os altos e baixos da vida quotidiana constituem o caminho que temos de percorrer à medida que vamos crescendo até chegar à medida total da plenitude de Cristo e a reproduzir a imagem da sua morte e ressurreição. Todas as experiências da vida são ocasiões para aprendermos a medida do perdão e do amor de Deus por nós e por todos os homens. Nós crescemos até à plena estatura de Cristo, não só como cristãos individuais, mas como um corpo inteiro. A ligação orgânica entre a cabeça e o corpo garante que este «recebe um crescimento que vem de Deus» (Colossenses 2, 19). Dando continuidade à obra que começou em nós, Cristo continua a «encher todo o corpo com as riquezas da sua glória» (LG 7).
A Constituição sobre a Sagrada Liturgia, cuja publicação precedeu a elaboração final da reflexão do Concílio sobre a Igreja na «Lumen Gentium», apontou, desde o início da deliberação conciliar, a importância da eclesiologia eucarística para a autocompreensão da Igreja. Abordámos esta ideia ao considerar de que modo a participação é uma das chaves da reforma litúrgica levada a cabo pelo Concílio, mas vale bem a pena repeti-lo aqui: «Todos se devem convencer de que a principal manifestação da Igreja consiste numa participação perfeita e ativa de todo o Povo santo de Deus nas mesmas celebrações litúrgicas, sobretudo na mesma Eucaristia, numa única oração, ao redor do único altar a que preside o Bispo rodeado pelo seu presbitério e pelos seus ministros» (SC 41). A «principal manifestação da Igreja» é a Igreja local, entendida como assembleia eucarística. Experimentamos o que significa ser Igreja e vemos que cada comunidade local tem tudo o que é necessário para ser Igreja (a pregação do Evangelho, a celebração dos sacramentos e a boa ordenação de muitos carismas e ministérios ao serviço de todos), quando todos nós nos reunimos em oração. Isto é especialmente verdade quando participamos na grande oração de ação de graças da Igreja, em que renovamos a nossa participação no mistério pascal, e a partir da qual somos enviados como testemunhas ao mundo.
Contudo, nenhuma Igreja local é autossuficiente ou completa sem as outras. Cada Igreja local está consciente da sua ligação com todas as outras comunidades cristãs locais, tanto em termos sincrónicos (no contexto presente) como diacrónicos (com as comunidades de crentes ao longo da história). Segundo o Concílio, a Igreja universal é uma comunhão de comunidades eucarísticas ou de Igrejas locais, unidas pelo Espírito de Deus (LG 23). A «Lumen Gentium» afirma que a Igreja de Cristo está presente cada vez que o povo de Deus se reúne na igreja local para ouvir o Evangelho de Cristo e participar no mistério da Ceia do Senhor. Por muito pequenas e pobres que as Igrejas locais possam ser, Cristo está atuante em cada uma delas, garantindo assim que a Igreja una, santa, católica e apostólica se realiza em cada lugar (LG 26). Na Eucaristia, somos constituídos como Corpo de Cristo, que é a Igreja.

© Richard R. Gaillardetz - Catherine E. Clifford
© Paulinas Editora, 2012
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Catherine E. Clifford e Richard R. Gaillardetz, As «chaves» do Concílio, Paulinas Editora, Prior Velho, 2012 (material protegido por leis de direitos autorais)


  • Eclesiologia eucarística [1]  [2]  [3]  [4]  [5]  [6]


Reflexões sobre a Igreja no Laboratório da fé


Postado por Marcelino Paulo Ferreira | 3.8.13 | Sem comentários
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