As «chaves» do Concílio


Lumen Gentium — Constituição Dogmática sobre a Igreja


A teoria conciliar de carisma
Mencionámos atrás o impasse de vários séculos entre protes­tantismo e catolicismo sobre o papel dos carismas na vida da Igreja. O Concílio deu vários passos importantes, embora apenas preliminares, para abordar questão tão controversa. 
É inegável a importância da noção de carisma* nos escritos de São Paulo. Paulo insistia que o Espírito Santo conferia a todos os batizados carismas, ou dons do Espírito, tendo em vista a edificação da Igreja. Esses carismas  ou dons, apresentam-se numa diversidade de formas, algumas mais estáveis do que outras. Na secular polémica entre protestantes e católicos, alguns teólogos protestantes, como Rudolph Söhm, colocavam a visão «carismática» da Igreja segundo Paulo em forte contraposição com as estruturas institucionais do catolicismo. Os polemistas católicos, por sua vez, viam esses carismas como dons importantes conferidos exclusivamente à comunidade apostólica primitiva. Tais dons foram desaparecendo gradualmente da vida da Igreja, em favor do lugar essencial das funções eclesiais estáveis. 
O Concílio Vaticano II tentou ultrapassar essa polémica. Enquanto São Paulo descrevia o corpo de cada crente como templo do Espírito Santo (1Coríntios 3, 16; 6, 19), os bispos aplicaram essa imagem a toda a Igreja. No texto-chave do presente capítulo, «dons hierárquicos» refere-se a funções estáveis da Igreja, e «dons carismáticos» refere-se aos muitos carismas que o Espírito reparte por todos os fiéis. Carisma e função não se opõem mutuamente, pois ambos têm por origem o mesmo Espírito. O Concílio reconheceu que a função eclesial não poderia existir a menos que fosse animada pelo Espírito Santo, e que os carismas não podiam sobreviver a menos que fossem submetidos a uma ordem que procurasse o bem de toda a Igreja. 
Apelando ao conceito bíblico de carisma, o Concílio conseguiu afirmar o papel indispensável de todos os fiéis na edificação da Igreja e na assistência prestada ao cumprimento da missão da Igreja no mundo. Escreveram os bispos que «o Espírito Santo não só santifica e conduz o Povo de Deus por meio dos sacra­mentos e ministérios, e o adorna com virtudes, mas 'distribuindo a cada um os seus dons como lhe apraz' (1Coríntios 12, 11), distribui também graças especiais entre os fiéis de todas as classes» (LG 12). Embora poucos — senão nenhuns — participantes no Concílio pudessem antever o florescimento de ministérios leigos que ocorreria nas décadas subsequentes, foi essa ênfase dada aos carismas de todos os batizados que proporcionou uma útil estrutura de interpretação teológica desse desenvolvimento pós-conciliar do ministério dos leigos.
Uma das formas pelas quais o Concílio conseguiu ultrapassar o binário carismas/funções foi sublinhando a relação recíproca entre esses dois termos. Em várias passagens, o Concílio sugeriu uma possível teologia de liderança pastoral ordenada dentro de uma comunidade animada por muitos carismas. A liderança pastoral dos ministros ordenados não tem de competir com o exer­cício dos muitos dons concedidos aos fiéis. A primeira requer o segundo. No magistério conciliar, os ministros ordenados para a liderança pastoral não deviam absorver no seu ministério todas as tarefas próprias da edificação da Igreja. Pelo contrário, os pastores da Igreja foram exortados a reconhecer, potenciar e afirmar os dons de todo o Povo de Deus. No Decreto sobre o Apostolado dos Leigos («Apostolicam Actuositatem» [AA]), o Concílio afirmou que a receção de carismas do Espírito, pelo Batismo, 
confere a cada um dos fiéis o direito e o dever de os aplicar na Igreja e no mundo, para bem dos homens e edificação da Igreja, na liberdade do Espírito Santo, que «sopra onde quer»... e, ao mesmo tempo, em comunhão com os outros irmãos em Cristo, sobretudo com os próprios pastores; a estes compete julgar da sua autenticidade e exercício ordenado, não de modo a apagarem o Espírito, mas para que tudo apreciem, retendo o que é bom (AA 3).
O Decreto sobre o Ministério e a Vida dos Sacerdotes («Presbyterorum Ordinis» [PO]) afirmou, de igual modo, a responsabilidade do sacerdote por confirmar e alimentar os dons dos fiéis: «Sabendo discernir se os espíritos vêm de Deus, perscrutem com o sentido da fé, reconheçam com alegria e promovam com diligência os multiformes carismas dos leigos, tanto os mais modestos como os mais elevados» (PO 9). Estas passagens situavam o ministério pastoral ordenado não acima, mas dentro da comunidade cristã. O ministro ordenado é responsável pelo discernimento e pela coordenação dos carismas e dos ministérios de todos os batizados.

* Carisma: termo derivado da palavra grega «charis», que significa «dom».

© Richard R. Gaillardetz - Catherine E. Clifford
© Paulinas Editora, 2012
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Catherine E. Clifford e Richard R. Gaillardetz, As «chaves» do Concílio, Paulinas Editora, Prior Velho, 2012 (material protegido por leis de direitos autorais)


  • O Espírito Santo na Igreja [1] [2] 

Há atualidade na Lumen Gentium?
Postado por Marcelino Paulo Ferreira | 29.6.13 | Sem comentários
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