As «chaves» do Concílio


Lumen Gentium — Constituição Dogmática sobre a Igreja


A luz dos povos é Cristo: por isso, este sagrado Concílio, reunido no Espírito Santo, deseja ardentemente iluminar com a sua luz, que resplandece no rosto da Igreja, todos os homens, anunciando o Evangelho a toda a criatura (cf. Marcos 16, 15). Mas porque a Igreja, em Cristo, é como que o sacramento, ou sinal, e o instrumento da íntima união com Deus e da unidade de todo o género humano, pretende ela, na sequência dos anteriores Concílios, pôr de manifesto com maior insistência, aos fias e a todo o mundo, a sua natureza e missão universal (LG 1).

Antecedentes
A Constituição Dogmática sobre a Igreja, «Lumen Gentium», é uma tentativa de expressar em traços largos a autocompreensão doutrinal da Igreja Católica. Este parágrafo inicial da Constituição, que dá início ao primeiro capítulo intitulado «O Mistério da Igreja», dá o tom a tudo o que se segue. O termo «mistério» é extraído do Novo Testamento. São Paulo usou a mesma palavra («mysterion» em grego) para se referir à autorrevelação de Deus em Jesus Cristo. Na carta aos Colossenses, Paulo escreve que a sua missão é «levar à plena realização a Palavra de Deus, o mistério escondido ao longo das gerações e que agora Deus manifestou aos seus santos», o mistério é Cristo (Colossenses 1, 25-27; 2, 2-3; 4, 3). O termo «mistério» traz consigo a conotação de qualquer coisa que não pode ser completamente explicada ou entendida. Há algo nele que permanece oculto, velado, escapando à apreensão da nossa inteligência. Contudo, insiste São Paulo, o próprio mistério de Deus e do amor divino pela humanidade foi revelado, a Palavra divina foi-nos dada de forma definitiva em Jesus Cristo. Através dele, o mistério do próprio ser de Deus foi dado a conhecer. Até mesmo este vislumbre real da vida de Deus, que vemos com os olhos da fé, desafia a nossa capacidade de entendimento. As palavras nunca podem definir ou expressar de forma adequada a realidade de Deus ou do seu amor sem limites.
O ensinamento de Paulo é desenvolvido ainda mais na sua carta aos Efésios. Diz-nos ele que na morte e ressurreição de Cristo recebemos o perdão e fomos reconciliados com Deus, como filhos e filhas adotivos de Deus. No seu mistério pascal, Cristo revelou o plano de Deus, desde toda a eternidade, de reunir toda a comunidade humana. «Com toda a sabedoria e inteligência, manifestou-nos o mistério da sua vontade, e o plano generoso que tinha estabelecido, para conduzir os tempos à sua plenitude: submeter tudo a Cristo, reunindo nele o que há no céu e na terra» (Efésios 1, 8-10). O mistério do amor reconciliador de Deus — um amor que derrubou as barreiras e a hostilidade entre Israel e as nações (Efésios 2, 14) — foi-nos revelado pelo Espírito de Deus. A esperança proclamada pelos profetas e pelos apóstolos é atendida e, agora, nós somos chamados a ser testemunhas do amor reconciliador de Deus diante de todos os povos.
Passar do uso paulino do termo «mistério», com referência ao plano salvífico de Deus revelado em Cristo, à sua aplicação pelos autores cristãos primitivos à vida sacramental da Igreja foi um curto passo. O mistério que celebramos nos atos litúrgicos da Igreja é apenas a nossa participação no mistério pascal, o mistério da nossa redenção em Cristo. Traduções latinas da Bíblia e de outros autores latinos utilizavam indiferentemente as palavras mistério ou sacramento para traduzir o termo grego «mysterion». No século IV, os autores cristãos começaram a utilizar esta linguagem para falar das celebrações rituais da Igreja. Exemplo disso encontra-se nas «Catequeses Mistagógicas» de Cirilo de Jerusalém. Esta obra é uma coletânea de ensinamentos ou catequeses dados pelo bispo de Jerusalém a cristãos recém-batizados, nos dias imediatamente a seguir à Páscoa. Cirilo explica os mistérios que esses novos cristãos celebraram na liturgia pascal, recordando a sua passagem pela morte e ressurreição para renascer com Cristo no Batismo, e a sua participação no seu Corpo e no seu Sangue na Eucaristia. Refere-se ao Batismo e à Eucaristia como «mistérios divinos». O seu significado mais profundo, insiste Cirilo, não pode ser discernido em aspetos exteriores. A fé cristã convida-nos a penetrar para além das aparências visíveis dos sacramentos, a fim de apreendermos as realidades sagradas que significam.
Durante a Idade Média, a teologia católica começou a aplicar a categoria de mistério, relacionado como o Corpo Místico de Cristo na Eucaristia, ao Corpo Místico de Cristo que é a Igreja. Os autores medievais entendiam que o fruto da participação na Eucaristia é a unidade, a comunhão com Deus e uns com os outros, que constitui o próprio fundamento da Igreja. No entanto, essa teologia era um pouco abstrata e ignorava, em grande parte, o rosto histórico e humano da Igreja. Muitas destas ideias permaneceram adormecidas durante muitos séculos, sobretudo depois da crise da Reforma protestante, no século XVI. Os reformadores protestantes, segundo os quais a Igreja se tinha desviado tanto do Evangelho que se afastara da própria intenção de Deus ao fundá-la, insistiam em termos por vezes polémicos que a Igreja visível ficara reduzida a um resto ou ruína. Para eles, a verdadeira Igreja de Cristo já não era visível, tendo ficado oculta aos seus olhos, e devia ser entendida mais como uma realidade espiritual conhecida apenas de Deus. Em reação a isto, a teologia católica, encabeçada pelo teólogo jesuíta Roberto Belarmino, deu uma forte ênfase à continuidade entre a realidade visível da Igreja institucional e a verdadeira Igreja estabelecida por Cristo. As ideias do cardeal Belarmino, em particular a forma como ele entendia a Igreja como sociedade visível e «perfeita», munida de tudo o que era necessário para a salvação dos seus membros, dominou os manuais de teologia católica até ao início do século XX. O ensinamento do Concílio Vaticano II constitui um esforço por restabelecer um equilíbrio entre a compreensão das dimensões internas e espirituais da Igreja e a sua realidade humana concreta, histórica e visível. Para consegui-lo, o Concílio regressa à teologia envolvida na compreensão bíblica e patrística de «mysterion», que serve de fundamento a uma teologia mais encarnacional da Igreja e dos sacramentos.

A renovação eclesiológica* dos séculos XIX e XX
no século XIX, Johann Adam Möhler (1796-1838) começara a tentar chegar a um entendimento mais profundo da Igreja em todas as suas dimensões. Sob a influência do idealismo romântico, na Universidade de Tubinga, retomou os escritos de Paulo e dos Padres da Igreja primitiva para redescobrir uma forma mais holística de entender a Igreja como uma realidade dinâmica e viva, como comunidade humana complexa, imbuída do dom do Espírito de Deus. Apresentou um conceito de Igreja como continuação da encarnação de Cristo na história humana. Como Edward Hahnenberg observa, com razão, o génio de Möhler «foi considerar a Igreja não como uma simples portadora do mistério da fé, mas como um aspeto desse próprio mistério». Sob a influência de Möhler, e mais tarde de Matthias Scheeben, a ideia de Igreja como «mistério» começou a ganhar terreno na segunda metade do século XIX.
Um projeto inicial de Constituição sobre a Igreja foi apresentado aos bispos, reunidos para o Concílio Vaticano I, a 21 de janeiro de 1870. O seu primeiro capítulo intitulava-se «A Igreja é o Corpo Místico de Cristo». Esse projeto nunca foi oficialmente debatido pelos bispos do Vaticano I, visto que muitos manifestaram sérias reservas em relação à tentativa de falar da Igreja como «Corpo Místico de Cristo». Consideravam essa abordagem demasiado vaga e preferiram definir a Igreja com base na sua estrutura concreta. Um projeto subsequente regressou à imagem preferida, derivada de Belarmino, da Igreja como «sociedade perfeita», centrando-se mais na sua forma visível e institucional. Só em 1943, no ensinamento contido na encíclica do papa Pio XII «Mystici Corporis», seria incluída uma eclesiologia mais encarnacional no magistério católico oficial. Pio XII tentou desposar a noção predominante da Igreja como sociedade visível com a noção da Igreja como Corpo Místico de Cristo, mais orientada para a Bíblia. No Vaticano II, vemos um esforço no sentido de desenvolver o ensinamento de Pio XII e de integrar de forma ainda mais plena as perspetivas das tradições bíblica e patrística. O uso feito pelo Concílio de uma abordagem encarnacional é sobretudo visível no primeiro capítulo da «Lumen Gentium»:
Porém, a sociedade organizada hierarquicamente e o Corpo místico de Cristo, o agrupamento visível e a comunidade espiritual, a Igreja terrestre e a Igreja ornada com os dons celestes, não devem ser consideradas como duas entidades, mas como uma única realidade complexa, formada pelo duplo elemento humano e divino. Apresenta, por essa razão, uma grande analogia com o mistério do Verbo encarnado. Pois, assim como a natureza assumida serve ao Verbo divino de instrumento vivo de salvação, a Ele indissoluvelmente unido, de modo semelhante a estrutura social da Igreja serve ao Espírito de Cristo, que a vivifica, para o crescimento do corpo (LG 8).
Note-se que a Igreja não é diretamente identificada com a encarnação em Cristo. Mantém-se uma distância crítica entre a comunidade humana reunida na Igreja, Corpo de Cristo, e o próprio Cristo, Palavra divina encarnada. A Igreja é comparada, por «analogia»**, com a encarnação da Palavra de Deus na natureza humana de Cristo.

* Eclesiologia: ramo da teologia dedicado à reflexão sobre a «ecclesia», ou seja, sobre a Igreja, com a sua missão, estruturas e ministérios.
** Analogia: meio para explicar qualquer coisa comparando-a com outra, reconhecendo algumas semelhanças ou similaridades entre ambas. No raciocínio teológico, pode-se encontrar uma analogia ou reconhecer alguma semelhança entre realidades divinas e humanas, embora tendo o cuidado de reconhecer as diferenças necessárias entre elas.

© Richard R. Gaillardetz - Catherine E. Clifford
© Paulinas Editora, 2012
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Catherine E. Clifford e Richard R. Gaillardetz, As «chaves» do Concílio, Paulinas Editora, Prior Velho, 2012 (material protegido por leis de direitos autorais)


  • A Igreja é como um sacramento [2] 

Há atualidade na Lumen Gentium?
Postado por Marcelino Paulo Ferreira | 22.6.13 | Sem comentários
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