As «chaves» do Concílio


Lumen Gentium — Constituição Dogmática sobre a Igreja


O ensinamento do Concílio:
a Igreja é como que um sacramento
Invertendo o curso dos acontecimentos testemunhados durante o Concílio Vaticano I, os bispos do Vaticano II criticaram severamente o primeiro projeto de Constituição sobre a Igreja, apresentado em 1962, que partia de uma consideração sobre a Igreja «militante», ou seja, com base na sua forma jurídica e institucional. Em vez de repetirem os ensinamentos do Vaticano I e de Pio XII, os bispos do Vaticano II favoreceram a apresentação mais bíblica e patrística da Igreja, expressa na noção de Igreja como sacramento de salvação da eclesiologia contemporânea. Um segundo esquema, revisto, sobre a Igreja, apresentado ao Concílio no outono de 1963, abria com uma consideração sobre «o Mistério da Igreja», em que a ideia da Igreja como sacramento figura de forma proeminente. Note-se que o termo «sacramento» tem um significado mais restrito e mais específico quando aplicado aos sete atos litúrgicos da Igreja. Os sete sacramentos (Batismo, Confirmação, Eucaristia, Reconciliação, Unção dos Doentes, Matrimónio e Ordem) são vistos como atos instituídos por Cristo, como sinais visíveis e eficazes da graça de Deus que é derramada nas vidas daqueles que estão devidamente dispostos a recebê-la. Quando a «Lumen Gentium» (LG) aplica o termo «sacramento» à Igreja, usa-o num sentido mais lato. Descrever a Igreja como sacramento não significa que se trate de uma realidade sacramental de forma tão intensa como os sete sacramentos.
Esquecemos, por vezes, que o ensinamento do papa Pio XII sobre a Igreja como Corpo Místico de Cristo se deveu a vários exageros das correntes de teologia romântica, que interpretava a ideia de Igreja como a encarnação em curso de Cristo, de uma forma demasiado literal. Em pelo menos um caso, isso levou as pessoas a pensar na unidade entre o Corpo Místico de Cristo e a Igreja, como qualquer coisa comparável à união hipostática* que existe entre a natureza divina e humana em Cristo. Outros fizeram comparações entre o corpo de Cristo transubstanciado na Eucaristia e a presença de Cristo na Igreja. Vários estudiosos protestantes queixavam-se de que a teologia católica caíra numa espécie de «docetismo** eclesial», glorificando de modo excessivo a Igreja, mas ignorando as dimensões histórica e humana da assembleia do povo de Deus. Foi o resultado de uma identificação demasiado literal ou direta entre Cristo e a Igreja. Os críticos temiam que uma tal abordagem tendesse a obscurecer o papel primordial de Cristo no ato da salvação. Pio XII e, por isso, os bispos do Vaticano II, quiseram apresentar uma visão devidamente equilibrada da dimensão humana e espiritual, ou visível e invisível, da Igreja, apelando à estrutura geral de mistério ou sacramento. Tentaram aplicar essa noção mediante uma analogia, traçando um paralelo entre a encarnação da Palavra divina na natureza humana de Cristo e a obra do Espírito de Deus na comunidade humana da Igreja, e através dela.

O primado de Cristo
Retomando as palavras iniciais da «Lumen Gentium», é importante notar o primado de Cristo: «A luz dos povos é Cristo». Estas palavras fazem eco da linguagem do papa João XXIII, quando explicou aquilo que pretendia do Concílio, numa mensagem transmitida pela rádio apenas um mês antes da sua abertura. Essa luz de Cristo, disse ele, deve brilhar com mais intensidade a partir da Igreja. Cristo, como vimos na nossa reflexão anterior sobre a noção de «mysterion» ou sacramento, é o sacramento primordial, o sinal e o instrumento perfeito da graça de Deus na história dos homens. No Evangelho de João, Jesus proclama: «Eu sou a luz do mundo» (João 8,12; 9, 5; ver ainda 1, 5.9; 12, 46). Ele revela-nos o amor do Pai e é a fonte da graça redentora de Deus. Na medida em que a Igreja está «em Cristo», um reflexo dessa mesma luz continua a brilhar para toda a humanidade. Neste sentido analógico, Jesus também pôde dizer aos seus discípulos: «Vós sois a luz do mundo» (Mateus 5, 14). A Constituição sobre a Sagrada Liturgia (SC) aponta para o facto de a fonte da Igreja estar em Cristo, de cuja Paixão nasceu: pois «foi do lado de Cristo adormecido na cruz que nasceu o sacramento admirável de toda a Igreja» (SC 5). O sangue e a água que jorraram do lado de Cristo (João 19, 33) simbolizam os sacramentos do Batismo e da Eucaristia, dos quais a Igreja nasceu. A própria Igreja torna-se sacramento do amor de autoesvaziamento de Cristo, sempre que segue o seu exemplo de humilde serviço. A comunidade humana reunida por graça de Deus na Igreja é chamada a ser instrumento da ação salvífica de Cristo no mundo. Por essa razão, São Cipriano, bispo de Cartago, no século III, pôde referir-se à Igreja como «sacramento de unidade», expressão adotada pela primeira vez na Constituição sobre a Sagrada Liturgia (SC 26), e mais desenvolvida na Constituição dogmática sobre a Igreja (LG 9, 48, 59), na Constituição pastoral sobre a Igreja no Mundo Contemporâneo (GS 45) e no Decreto sobre a Atividade Missionária da Igreja (AG 1). Antes de analisarmos mais a fundo estes textos, vejamos como Cipriano e o Concílio Vaticano II entendem a natureza da nossa salvação.

Sacramento universal de salvação
Cipriano fala da Igreja como «sacramento de salvação» no seu tratado «Sobre a Unidade da Igreja» (número 7). Compara a Igreja à túnica sem costuras usada por Cristo (João 19, 23-24), e apresenta-a como imagem de como o céu e a terra foram inseparavelmente tecidos no Corpo de Cristo. Quando a Constituição sobre a Sagrada Liturgia quis insistir sobre a natureza comunitária do culto cristão, apelou a essa mesma ideia. Pelo facto de a Igreja ser «o sacramento da unidade», a ação da liturgia é entendida como a obra de «todo o corpo» e não pode ser privatizada (SC 26). O ensinamento do Concílio sobre o «povo de Deus» ajuda-nos a entender que nós não somos salvos como indivíduos, mas como membros de um «povo santo». Quando vivemos de acordo com a graça salvífica de Deus, as nossas relações são transformadas. Somos reconciliados, não só com Deus, mas também uns com os outros, sendo-nos permitido viver em maior harmonia com o mundo que nos rodeia. O parágrafo inicial da «Lumen Gentium» transmite esta mesma realidade, quando diz que a Igreja é sinal «da íntima união com Deus e da unidade de todo o género humano» (LG 1). Nestas poucas palavras põe em destaque a altíssima vocação da comunidade cristã: somos chamados a ser um exemplo vivo da unidade que Deus deseja para toda a comunidade humana. Noutro lugar, a «Lumen Gentium» considera a Igreja como «raça escolhida, sacerdócio real, povo escolhido por Deus» (1Pedro 2, 9), estabelecido pela nova aliança em Cristo: «Aos que se voltam com fé para Cristo, autor da salvação e princípio de unidade e de paz, Deus chamou-os e constituiu-os em Igreja, a fim de que ela seja para todos e para cada um sacramento visível dessa unidade salutar» (LG 9). É neste sentido que o Concílio fala da Igreja como «sacramento universal de salvação» (LG 48; AG 1; GS 45). Isso significa que, na sua vida quotidiana, a comunidade cristã deve viver uma vida a que todos os povos poderiam aspirar: respeitando a dignidade de todas as pessoas, certificando-se de que ninguém vive em necessidade, cuidando dos pobres e dos vulneráveis, trabalhando por uma justa partilha dos recursos da terra e por sistemas económicos justos e sustentáveis, desafiando a violência e a injustiça e promovendo a paz. Assim como Cristo nos deu um exemplo perfeito do que significa ser humano, a Igreja deve ser um modelo para toda a comunidade humana. A «Lumen Gentium» é inequívoca ao afirmar: «Assim como Cristo realizou a obra da redenção na pobreza e na perseguição, assim a Igreja é chamada a seguir o mesmo caminho, a fim de comunicar aos homens os frutos da salvação» (LG 8).
Para a maior parte de nós, testemunhar a boa-nova da nossa salvação significa levar vidas simples e autênticas, servindo os outros nas atividades comuns do trabalho e da família. Nós reconhecemos a graça de Deus na acumulação de opções fiéis que moldam a nossa vida quotidiana. Como exemplo disso, poderíamos considerar os monges trapistas de Tiberine, que evitavam a evangelização entusiástica, vivendo uma simples presença de oração no Norte de África. Foram martirizados quando se recusaram a fugir para se pôr a salvo, optando antes por permanecer ali, em solidariedade para com os seus pobres vizinhos muçulmanos. Ou ainda, poderíamos meditar sobre o exemplo da comunidade «amish» de Nickel Mines, Pensilvânia, que não hesitou em perdoar ao rapaz que assassinou os seus filhos num violento tiroteio. Este tipo de solidariedade e perdão ultrapassa uma capacidade de amor puramente humana; tem as suas raízes numa experiência profunda e continuada de amor de Deus. Quando vivemos e agimos com essa consciência, nós próprios nos tornamos um reflexo do próprio amor de Deus pelos outros. Ao mesmo tempo, devemos admitir humildemente que continuamos sujeitos ao pecado e às falhas, sendo igualmente capazes de nos tornarmos contra-testemunhas e obstáculo ao amor de Deus. O triste capítulo do abuso e da exploração sexual por parte de ministros da Igreja, e das falhas de alguns chefes da Igreja no que diz respeito à proteção das vítimas reais e potenciais de tais abusos, é uma advertência de que a comunidade cristã está longe de ser imune à disfunção. Muitos vêem nessas falhas, com razão, um contrassinal que mina gravemente a credibilidade do testemunho da Igreja no mundo. Revelam a nossa contínua necessidade de permanecer em graça, de sermos curados e de vivermos de forma íntegra.
Para ultrapassar o perigo referido antes de sublinhar a vida divina da Igreja, excluindo o seu próprio caráter humano, o capítulo da «Lumen Gentium» sobre «O mistério da Igreja» é seguido de imediato por um capítulo sobre «O Povo de Deus». Ao apresentar este capítulo do projeto revisto aos bispos conciliares, o relator*** explicou que a reflexão do Concílio sobre a Igreja como mistério de comunhão, iniciada no capítulo 1, continua nesta análise da Igreja como comunidade peregrina chamada por Deus. A imagem bíblica do povo de Deus tem as suas raízes nas Escrituras do Antigo Testamento, em que Israel é apresentado como o povo chamado por Deus e por Ele conduzido para a liberdade. Também desempenha um papel importante no Novo Testamento (1Pedro 2, 9-10), ajudando a comunidade cristã a confrontar-se a si própria com o longo horizonte da história da salvação. O termo grego «ecclesia» ou Igreja faz eco do termo hebreu «qahal», utilizado em referência ao povo reunido por Deus. A imagem da Igreja como povo peregrino de Deus ajuda-nos a compreendê-la nas suas dimensões humana e histórica como um povo «a caminho». Com efeito, um dos primeiros nomes dados à comunidade cristã nas Escrituras é seguidores do «Caminho» (Atos 9, 2).
A compreensão apropriada do papel da Igreja como sacramento ou instrumento de salvação no mundo implica uma adequada apreciação da natureza escatológica da Igreja. A «Lumen Gentium» reflete sobre a vocação da Igreja como sacramento universal de salvação na história humana, no contexto da sua reflexão sobre a natureza escatológica ou provisional da Igreja, ciente de que esta só chegará à perfeição na consumação do plano de Deus no fim dos tempos. Nós vivemos «numa época intermédia», num período da história em que o plano de Deus de nos reconciliar em Cristo já começou, mas ainda não está plenamente realizado.
É no nosso próprio esforço, na nossa fidelidade ao Evangelho, que proclamamos e apontamos para Cristo e, de facto, para a meta de toda a criação. A natureza da Igreja deve ser a unidade e a comunhão que significa. Não se trata de uma realidade exclusivamente contida dentro dos limites institucionais da Igreja, mas de uma realidade universal, que deve ser comunicada a toda a humanidade. A Igreja «universal» ou «católica» é aquela comunidade em que todos os povos encontram uma casa. A mensagem de reconciliação que proclama é «boa notícia» para todos os povos. Assim, o Decreto sobre a Atividade Missionária da Igreja baseia-se na compreensão da Igreja como sacramento universal de salvação. Considera a Igreja, não como uma realidade distinta do mundo ou da comunidade humana alargada, mas como «sal da terra e luz do mundo» (Mateus 5, 13-14), como uma intermediária, no mundo, chamada a trabalhar «para que tudo seja restaurado em Cristo e nele os homens constituam uma só família e um só povo de Deus» (AG 1). A missão da Igreja é uma continuação da missão reconciliadora de Cristo no mundo.
Na sua vida e testemunho, a Igreja deve ser um reflexo do próprio Cristo, testemunhando o seu amor pelos pobres, a sua misericórdia e o seu perdão frente à violência e à injustiça, o seu desejo de que todos possam gozar da plenitude da vida. Nós desempenhamos esta missão de cura e reconciliação quando cuidamos dos pobres, dos doentes e dos vulneráveis, nas nossas famílias e comunidades. Contribuímos para a construção de uma comunidade mais humana quando trabalhamos por que haja mais justiça no nosso local de trabalho, na nossa cidade e no nosso país. Não seria possível dar continuidade à missão de Cristo sem a presença e a ação do Espírito de Deus nas nossas vidas. Cristo enviou o seu Espírito para habitar em nós como conselheiro (João 14, 16-17), e nos guiar para podermos discernir como viver o Evangelho no nosso tempo. Como veremos num próximo capítulo, o Concílio tentou recuperar uma apreciação mais plena da nossa dependência do Espírito Santo na vida da Igreja.

* União hipostática: do termo grego «hipóstase», que se refere à substância subjacente ou à subsistência pessoal de cada uma das três Pessoas divinas da Trindade. A doutrina da união hipostática refere-se à unidade das naturezas divina e humana na única pessoa de Cristo, verdadeiramente divina e verdadeiramente humana.
** Docetismo: do verbo grego «dokein», que significa «aparentar ou parecer». Os seguidores do docetismo afirmavam que Jesus apenas parecia humano. Esta visão predominou entre os gnósticos do século II, sendo contraposta pelos cristãos como herética. A visão dualista do mundo dos gnósticos considerava boa a dimensão espiritual da vida, desvalorizando ou considerando mau tudo o que fosse material e corpóreo. Tendiam a negar as realidades corporais da encarnação, sofrimento, morte e ressurreição de Cristo, negando efetivamente a sua natureza humana.
*** Relator: o relator era um membro de uma comissão ou subcomissão conciliar incumbido de «relatar» aos membros do Concílio as razões das mudanças feitas a determinado texto apresentado aos bispos.

© Richard R. Gaillardetz - Catherine E. Clifford
© Paulinas Editora, 2012
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Catherine E. Clifford e Richard R. Gaillardetz, As «chaves» do Concílio, Paulinas Editora, Prior Velho, 2012 (material protegido por leis de direitos autorais)


  • A Igreja é como um sacramento [1] 

Há atualidade na Lumen Gentium?
Postado por Marcelino Paulo Ferreira | 26.6.13 | Sem comentários
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