Eu digo fé. Tu dizes...


O Laboratório da fé convidou algumas pessoas, crentes ou não crentes, para escreverem um texto sobre a fé. O resultado é apresentado, mensalmente, nesta rubrica intitulada: «Eu digo fé. Tu dizes...». 
O texto que se segue é da autoria do jornalista José Manuel Fernandes.


José Manuel Fernandes, no Laboratório da fé, 2013
Nasci, na década de 1950, numa família católica da classe média e, como acontecia nessa época com quase todas as crianças, fui baptizado e segui a catequese até à primeira comunhão, uma cerimónia festiva que vivi intensamente. Continuei depois muito ligado à Igreja da minha paróquia, a do Sagrado Coração de Jesus em Lisboa, beneficiando do activismo de um pároco precocemente desaparecido – o padre Aparício – e da excitação da construção e inauguração de um novo templo, para mais uma igreja arquitectonicamente arrojada, filha do talento de Nuno Teotónio Pereira e Nuno Portas. Continuei assim ligado a grupos que funcionavam junto da paróquia, cheguei a ajudar à missa e fiz, quando chegou a altura, o Crisma. Até que a minha vida mudou.
Quando tinha 15 anos e andava no Liceu Pedro Nunes, em Outubro de 1972, a polícia política da ditadura assassinou um estudante, Ribeiro Santos. Esse evento foi o detonador para o meu envolvimento no movimento associativo dos estudantes e, depois, no activismo político. Fi-lo, como era comum na época, numa organização radical, de inspiração marxista-leninista. De facto, no Portugal de Salazar e Caetano não era difícil que a revolta juvenil desembocasse no radicalismo político. Foi assim que me tornei comunista, mas numa sua versão mais radical – o maoismo –, tal como foi assim que, durante alguns anos (poucos, felizmente) vivi para a revolução – fui, como então se dizia, um “soldado da revolução”.
Foi uma adesão total e, por isso, um mergulho num universo dominado por uma ilusão falsamente redentora e totalmente falsa – a ilusão comunista. Mas que era absoluta e impunha uma visão do mundo que se tinha por indiscutível, “científica” e, por isso, materialista. Deus ou a Fé Cristã não tinham lugar nela – não só a religião era vista como o “ópio do povo”, como o ateísmo nos surgia como uma espécie de dogma. Foi uma experiência que descrevi numa troca de cartas com D. Manuel Clemente, Bispo do Porto (Diálogo em Tempos de Escombros, Pedra da Lua, 2010): “Bebi o espírito do tempo e, quase sem transição, tornei-me materialista lendo as vulgatas por onde então se estudava o ‘materialismo dialéctico’ e o ‘materialismo histórico’. Esses textos não permitiam que se ficasse no meio da estrada, não deixavam qualquer espaço para a existência de um Ser que não fosse matéria. Não só me tornei ateu, e ateu militante, como tinha dificuldade em entender que aquela explicação do mundo que me parecia evidentíssima e completa não o fosse já para todos.”
Como é que isso sucedeu? Fazendo um percurso em que o meu interesse pela Ciência desempenhou um papel importante. Como marxista e materialista, eu achava que a ciência ou já explicava tudo, ou iria explicar, e que não havia espaço senão para a matéria e para as suas forças no nosso Universo. Hoje sei que há graus de incerteza que a Ciência nunca suprirá e que basta isso para não podermos demonstrar cientificamente que Deus não existe. Ou que existe. Foi assim que me tornei agnóstico, aquele que não sabe, o que não tem Fé mas também não se opõe aos que têm Fé. Fi-lo por dúvida genuína e não por conveniência, como hoje está na moda. Como escrevi nessa mesma conversa epistolar com D. Manuel, “por vezes, sobretudo em alguns momentos mais intensos, tenho pena de não ter Fé, mas sinto que ter ou ter Fé não é uma decisão racional”, ou seja, que “não posso decidir ‘acreditar’”.
Muitos ateus militantes não aceitam esta posição de “não saber” – e a partir daqui retomo o essencial do que escrevi num livro recente, autobiográfico, Era Uma Vez a Revolução (Aletheia, 2012).
É essa a posição de Richard Dawkins, o autor de A Desilusão de Deus, que recentemente me disse numa entrevista que só lhe interessava saber que “não é possível provar que Deus existe”, que tentar fazê-lo seria uma perda de tempo como a de procurar demonstrar a existência de fadas, pelo que não conseguia “encontrar uma situação em que sentisse que existir Deus era necessário”. Dawkins, mesmo sendo capaz de admitir que as religiões podem ter alguma utilidade – “considero-me agnóstico quanto às religiões” –, entende que “a Fé é a grande desculpa para se escapar à necessidade de pensar e de avaliar a evidência factual”.
A forma como algumas religiões foram instrumentalizadas ao longo da História para os piores fins poder-me-ia levar a aceitar esta argumentação. Afinal ela casa a mesma evidência científica que eu conheço com uma percepção da evolução da Humanidade que associa religião a obscurantismo. Mas há outro ponto de vista que merece ser considerado: aquele que olha para as diferentes religiões e as vê como formas de assegurar o conjunto de valores e regras de comportamento que permitem às sociedades manter-se coesas. Antes de existirem leis formuladas pelos Estados, havia já regras que as pessoas seguiam voluntariamente ao aderirem a uma religião, regras sem as quais é muito difícil imaginar comunidades humanas estruturadas. Como um dia disse Irving Kristol, “as pessoas precisam de religião. É um veículo para que exista uma tradição moral. Trata-se de um papel fundamental que nada pode substituir”.
É de resto muito interessante ler as passagens sobre religião do pequeno ensaio autobiográfico que Kristol escreveu para Neo-Conservatism, The Autobiography of na Idea. Nela ele faz duas distinções importantes. Uma é sobre acreditar ou não na existência de Deus, uma formulação que diz não ter sentido porque o conceito de “existência” não é um conceito divino. Por isso, ele acha que uma pessoa não “acredita” em Deus, antes tem Fé em Deus. “A relação com Deus, escreve ele, não é racionalista”, uma formulação não muito diferente da que utilizei nesses meus diálogos com D. Manuel Clemente. “É por isso que as crianças são ensinadas a rezar, em vez de serem ensinadas nas ‘provas’ da existência de Deus”, conclui.
A outra é sobre a importância que os teólogos cristãos dão, na sua interpretação da Bíblia, ao facto de “a natureza humana colocar inerentes limitações ao destino humano”. O “pecado original” é, no fundo, uma forma de nos alertar para os nossos limites, limites que decorrem da nossa natureza profunda. Kristol recorda que esta doutrina já chocava com a sua crença num socialismo utópico no curto período juvenil em que foi trostkista (movimento que deixou aos 22 anos). No meu caso, foi a descrença na visão optimista da natureza humana que tinha quando era mais novo que também contribuiu para a minha descrença nas utopias socialistas e progressistas. Essa descrença também me fez reaproximar da religião – mas não de voltar a “acreditar”.
Mas há uma outra componente, tão ou mais importante, uma componente moral e cultural. Aqui há uns anos, em conversa com um amigo espanhol muito de esquerda e que nunca perdia uma ocasião para criticar o protestantismo, ele virou-se para mim e disse-me: “Deixa-te de conversas. Nós, os ibéricos, somos todos católicos. Podemos dizer que somos ateus, mas somos católicos. Foi assim que fomos educados”. Essa frase, vinda de quem vinha, fez-me pensar. E não me custou a admitir que, pelo menos culturalmente, somos todos católicos. É essa a matriz da sociedade, são essas as referências dos valores que impregnam tanto o nosso quotidiano como o nosso sistema legal.
Esta admissão de um “catolicismo cultural” é, contudo, insuficiente e, a meu ver, pobre. Quando penso naquilo que sou, e que de alguma forma sempre fui, não me posso dissociar dos valores morais que eram e são os da família onde cresci e das comunidades que integrei. E esses valores, que sempre procurei que dessem um sentido moral à minha vida, são valores do Cristianismo. Ao contrário do que admito possa ter acontecido com outras pessoas da minha geração ou mais velhas, nunca vivi o catolicismo como uma doutrina castradora. Os deveres rigorosos que impunha e impõe nunca deixaram de ser os meus, pois nunca acreditei na ausência de referências e sempre valorizei o dever de se ser exigente, sobretudo quando se começa por se ser exigente consigo mesmo. A preocupação com o outro que encontrei no Cristianismo nunca deixou de estar presente na minha vida, uma preocupação que não é apenas com um “outro” abstracto e longínquo – o pobre, o proletário –, antes uma preocupação que começa com as dificuldades concretas dos que vivem a nosso lado. O sentido da compaixão, a preocupação com a lealdade, a noção de que somos seres limitados e imperfeitos e que isso nos exige humildade e resiliência, o princípio da tolerância sem abdicar daquilo em que se acredita e por que se batalha, todos esses valores que me foram transmitidos pela educação católica sempre me deram balizas morais de acordo com as quais procurei e procuro julgar os meus actos, mesmo quando às vezes tenho menos sucesso. É por isso que sinto que devo muito ao Cristianismo, mesmo não tendo Fé.

© José Manuel Fernandes
© Laboratório da fé, 2013


Outros textos publicados no Laboratório da fé 

Postado por Marcelino Paulo Ferreira | 22.4.13 | 10 comentários
10 comentários:
  1. Gostei da frase do JMF "...mas sinto que ter ou ter Fé não é uma decisão racional”, ou seja, que “não posso decidir ‘acreditar’”.De facto não é uma decisão racional. E não é mesmo. Sempre li e ouvi que a Fé era uma Graça - ou seja, algo que alguem, a quem chamamos Deus, nos dá, cede, o que seja... Agora sei que assim é e também sei que não consigo (nem quero) explicar como é a Fé. É só. Gostaria muito, mas mesmo muito, de partilhar esta beleza - porque este acreditar é profudamente belo! Mas duvido que seja partilhavel.

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    1. Obrigado pelo seu comentário.
      Acredite que essa beleza pode e deve ser partilhada.
      Continue a fazê-lo (connosco)!

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  2. Eu discordo do JMF. A fé pode ser uma Graça mas a nossa liberdade está primeiro. Deus só nos pode dar aquilo que a nossa vontade ditar. Basta racionalmente dizer "quero". Querer crer é já em si crer.
    A posição daqueles que dizem "lamento mas não consigo ter fé" é uma falácia. É o mesmo que dizer "lamento mas não consigo ser generoso". Por natureza, ninguém é altruísta. É preciso dar o passo e esse passo não é nenhuma magia de Deus - vem da nossa própria liberdade. Por isso é que a fé dos homens é tão frágil - porque é humana. Também por isso é que é tão forte - porque é absolutamente voluntária.
    Leonor

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    1. Obrigado Leonor pelo seu comentário.
      No entanto, lembramos que, de facto, a fé é uma graça antes da liberdade humana. Nesse sentido, não é a nossa liberdade que «está primeiro», mas a oferta de Deus. É certo que a nossa liberdade consiste em aceitar essa oferta, em dispor a nossa vida para acolher a graça de Deus.
      A este propósito recordamos as palavras de Bento XVI ao iniciar uma série de catequese sobre a fé: «Eis, pois, a maravilha da fé: Deus, no seu amor, cria em nós — através da obra do Espírito Santo — as condições adequadas para que possamos reconhecer a sua Palavra. O próprio Deus, na sua vontade de se manifestar, de entrar em contacto connosco, de se fazer presente na nossa história, torna-nos capazes de o ouvir e acolher». — http://bit.ly/P7CJc5

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    2. Tem toda a razão. Deus é sempre primeiro. Obrigada pela chamada de atenção.
      Mas sem a Criação, não teria havido pecado. E sem pecado, nada de fé. E eis que encontramos muita gente que pensa isso - que não tem pecado. Que não tem que prestar contas. Que não deve nada a ninguém. Que nasceu e respira por direito próprio. Por um acaso absurdamente perfeito (?). Que se maravilha com o por do sol... sozinho. O sol está lá milhões de anos - nós só cá vimos uma vez!
      Leonor.

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    3. Leonor, porque diz que «sem a Criação, não teria havido pecado. E sem pecado, nada de fé». Acha que a fé depende do pecado? Pode explicar melhor a sua opinião?
      Para ajudar a continuar a segunda parte da sua reflexão remetemos de novo para uma outra catequese de Bento XVI sobre a fé: «O mundo não é um magma amorfo, mas quanto mais o conhecemos e descobrimos os seus mecanismos maravilhosos, tanto mais vemos um desígnio, vemos que existe uma inteligência criadora. Albert Einstein disse que nas leis da natureza «se revela uma razão tão superior que toda a racionalidade do pensamento e dos ordenamentos humanos em comparação é um reflexo absolutamente insignificante» (O Mundo como eu o vejo). Portanto, um primeiro caminho que leva à descoberta de Deus é a contemplação da criação com um olhar atento» — http://bit.ly/17HVBaJ

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  3. O meu raciocínio é muito simples: só somos salvos pela nossa liberdade de escolha.(Era essa a ideia da minha primeira mensagem. Sim, escolhemos acreditar! É ou não é esse o desafio que Deus nos coloca?). E só precisamos de ser salvos porque existe pecado. Penso que isso é elementar. Por isso, sim, só existe fé porque existe pecado.
    Mal pensado?
    Por favor, não seja tão amável a dar-me importância. Não sou estudiosa e não quero acabar este diálogo muito envergonhada.
    Leonor.

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    1. Leonor, obrigado pela sua participação. Sim, nós temos a liberdade de acreditar ou não acreditar, é um ato livre, da nossa responsabilidade. Deus não se impõe nem nos obriga a nada. A iniciativa é dele; a decisão é nossa. Ele convida; nós respondemos ao convite. Ele propõe-se; nós decidimos sobre a proposta.
      A outra parte da reflexão que envolve a «salvação» é mais complexa! Será que a salvação só existe porque existe o pecado? Será que só existe fé porque existe pecado? Na reflexão que propomos sobre o «Credo», escrevemos: «todas as tentativas para explicar a salvação (justificação, resgate, redenção, satisfação, libertação, reconciliação) são sempre imperfeitas; são isto mesmo «tentativas» para exprimir um dom de Deus. Ele anula todas as distâncias, mesmo aquelas que são fruto da nossa recusa em amar» (http://bit.ly/14205DG). É um tema que merece a nossa melhor atenção e cuidada reflexão.
      Não se sinta «envergonhada». O Laboratório da fé existe para o diálogo, para ajudar a «redescobrir o caminho da fé». E neste caminho todos somos «estudiosos» e aprendizes!
      Continue a partilhar connosco a sua reflexão!

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  4. Ok, então falemos só de fé.
    O que é ter fé? É uma emoção? É acreditar nos milagres de Jesus? Na ressurreição da carne? Para mim, que não sou estudiosa (insisto!), ter fé é não falhar. É seguir a Cristo, ponto.* Se eu fosse levar à letra a ideia de que fé é acreditar no sobrenatural então, sim, podia sentar-me à porta de qualquer igreja à espera que Deus me desse essa graça de acreditar no mais incrível. Não vou nessa. Acho que ter fé é uma responsabilidade. É difícil de acreditar. É difícil ter-se fé. É preciso trabalhar. Pode acontecer ou pode não acontecer mas se eu pensar muito, o mais provável é estar constantemente a por tudo em causa – e eu faço por temer a Deus ou, supondo que não tenho fé, faço por temer a vida que ainda não vivi e aquilo que ainda não sei.
    Tal como é fácil dizer-se que não se foi agraciado com a fé, também é bonito dizer-se que se tem fé. É simpático. E são muito consoladores os momentos em que Deus claramente se nos revela. (Nota cínica: se é que é verdadeiramente Ele que se nos revela…)
    E eu tenho fé. É evidente que acredito nos milagres e na ressurreição. Acredito? E se Jesus me aparecesse e me ordenasse que caminhasse sobre as águas, o que é que acontecia? Se o próprio Pedro era um “homem de pouca fé”, que fé seria a minha?
    Não tenho qualquer presunção que não esta: é difícil de acreditar mas é uma responsabilidade a que eu não posso falhar. Porquê? Devo-o a quem? Não sei. Acho que não é só uma questão moral. (Porque nasci, respiro, etc.) Suponho que seja uma questão de fé. (A tal graça de Deus?). Se assim for, estou talvez a julgar mal o José Manuel Fernandes e fui agraciada por Deus à sua frente. Não merecia, certamente!
    * Lembro-me do choque que foi a Madre Teresa de Calcutá ter deixado escrito que não sentia fé ou não sentia Deus… não sei bem, mas a mim nunca me chocou absolutamente nada e, pelo contrário, acho que só lhe atribui mais santidade.
    Leonor

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    1. Leonor, o que é ter fé? A fé faz parte da experiência vital do ser humano. A fé inscreve-se no âmbito da confiança. A fé cristã também parte desta experiência vital própria de todos os seres humanos.
      É verdade que a fé é uma responsabilidade. Mas antes é uma dádiva de Deus. Imaginemos um presente que recebemos: é uma dádiva, mas para o ser tem de ser recebido, acolhido. Quando eu recuso um presente, o que é que acontece? Deixa-a de o ser. A fé é uma dádiva de Deus, sempre e antes de tudo. Qual é a minha liberdade: aceitar ou recusar. Outra questão são as razões por que uns aceitam e outros recusam...
      «Eu nao posso falhar!». Leonor, a dádiva de Deus é muito maior do que as nossas falhas. Aliás, não temos qualquer mérito por muito que possamos fazer para «agradar» a Deus. A fé não se joga no mérito ou no demérito. É sempre uma dádiva. Esta é a das verdades mais difíceis de aceitamos como humanos (e pior ainda pelo facto de sermos europeus, porque estamos habituados a pensar tudo em termos de mérito e de demérito). É normal pensar assim, pois o tema da retribuição atravessa a nossa história, seja como mérito seja como castigo. Mas o facto de ser normal pensar assim não significa que seja realmente assim. A fé cristã é uma dádiva de Deus, sempre dádiva, sem reservas e sem querer nada em troca, nem sequer a nossa aceitação. Deus não me deixaria de amar se eu recusasse ter fé.

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