— João Alberto Sousa Correia —

Jesus, o rosto da misericórdia do Pai

O evangelho de Lucas é o terceiro, na ordem canónica, e o segundo, na extensão (24 capítulos — apenas é superado pelo evangelho de Mateus que apresenta um total de 28 capítulos). Regista unidade literária e temática com o livro dos Actos dos Apóstolos, à boa maneira das obras historiográficas da época. As duas obras começam de forma parecida e registam muitas palavras e expressões comuns no final do evangelho e no começo do livro dos Actos (unidade literária), assim como apresentam temas comuns, tais como a salvação, o Espírito e a oração (unidade temática).
Tudo leva a crer que o autor seja mesmo Lucas [o primeiro a fazer esta atribuição é Ireneu, pelo ano 180 da era cristã], «o caríssimo médico» (Colossenses 4, 14), discípulo de Paulo, um cristão de segunda geração que, para a composição do evangelho, se apoiou em Marcos e Mateus, assim como em fontes próprias [ele próprio o admite em 1, 3, quando afirma: «resolvi eu também, depois de tudo ter investigado cuidadosamente desde a origem, expô-los a ti por escrito e pela sua ordem, carísismo Teófil»]. Tem a particularidade de trabalhar os textos que herda da tradição escrita ou oral, no que respeita à ordem, ao vocabulário e ao estilo, incutindo-lhes uma especificidade que não deixa insensível o leitor atento.
Lucas teria composto este evangelho por meados da década de 80, talvez em Antioquia da Síria, e destinou-o a cristãos de «cultura grega, como se vê pela língua, pelo cuidado em explicar a geografia e usos da Palestina, pela omissão de discussões judaicas, pela consideração que tem pelos gentios» [A. Pinto Cardoso, «Evangelho segundo S. Lucas», in Bíblia Sagrada, p. 1663]. A preocupação é sobretudo reavivar a fé dos crentes (cfr. 1, 4) que se encontrava em estado de letargia, em virtude da rotina e do retardamento da parusia (última vinda de Jesus que se cria estar para breve).

Aspectos literários

O grego de Lucas é o melhor dos quatro evangelhos e, nalguns casos, situa-se ao nível do melhor grego clássico [é disso exemplo Lucas 1, 1-4]. Pela forma como escreve, o autor seria mesmo de língua e cultura gregas.
De entre os recursos literários e estilísticos, a maior parte são comuns aos restantes evangelhos (figuras de estilo, quiasmos, inclusões). Destaca-se, no Terceiro Evangelho, a síncrese ou paralelismo, com a qual Lucas, mesmo comparando, pretende sublinhar a superioridade de Jesus Cristo em relação a qualquer outro personagem (o exemplo mais evidente está nos dois primeiros capítulos e resulta do paralelismo entre Jesus e João). Relevante ainda é o facto de Lucas adequar a linguagem a cada um dos personagens, fazendo que haja diversidade no modo de falar dos intervenientes, conforme a sua maior ou menor instrução.
Do ponto de vista literário, a novidade maior prende-se com a «secção da viagem» (9, 51 —18, 27[28]). De resto, aparece bem vincada a «narrativa da infância» (capítulos 1 e 2), assim como a Paixão, Morte e Ressurreição de Jesus (capítulos 23 e 24). Com base nestas constatações, apresentamos o seguinte esquema ou estrutura literária.
  • O Salvador entra na história (1—2). Os dois primeiros capítulos do Terceiro Evangelho, em que «a luz do Ressuscitado ilumina a mangedoura de Belém» [B. Marconcini], apresentam-se como uma síntese da fé cristã em Jesus. As palavras-chave são «alegria» e «paz», diversas vezes repetidas nestes dois capítulos.
  • O tempo do Baptista (3, 1-20). João Baptista é, para Lucas, o último grande profeta, um anunciador da conversão (3, 3.8), vista como uma atenção aos outros e aos problemas sociais (3, 10.12.14).
  • Jesus inicia a sua pregação na Galileia (3, 21 — 9, 50). Após o relato das tentações de Jesus (4, 1-13) e o seu discurso programático na sinagoga de Nazaré (4, 14-30), o evangelho apresenta diversos ensinamentos e milagres de Jesus, onde se evidencia a palavra «evangelizar».
  • Viagem para Jerusalém (9, 51 — 19, 27[28]). Tudo quanto se passa a caminho de Jerusalém manifesta uma salvação em acto e, por isso, o advérbio de tempo «hoje» reveste-se de uma importância e força expressiva extraordinárias. A referência ao caminho para Jerusalém divide esta secção em três secções menores: 9, 51 — 13, 21; 13, 22 — 17, 11; 17, 12 —19, 27[28]).
  • Realização em Jerusalém (19, 28[29] — 24, 53). Jesus morto e ressuscitado é a realização e superação de todas as promessas messiânicas e a luz que ilumina todos os acontecimentos do evangelho. A palavra«completar-se» ou «realizar-se» impera nesta secção.

Aspectos teológicos

Lucas é, por excelência, o evangelista da história da salvação, dado que, melhor do qualquer outro, une estas duas realidades, a história e a salvação. A salvação, em seu entender, acontece no quotidiano, sendo Jesus Cristo o fundamento da história salvífica.
Começada em Israel, esta história continua na Igreja, cujos membros necessitam de se dispor a quatro procedimentos para aceder à salvação:
  • Escuta da Palavra. Maria, mãe de Jesus (1, 26-38), e Maria, irmã de Marta e Lázaro (10, 38-42), são propostas como dois modelos de escuta;
  • Desapego dos bens terrenos, em ordem a seguir Jesus (14, 33) ou a não haver necessitados entre os cristãos (Actos dos Apóstolos 2, 44-45);
  • Oração insistente, atitude de Jesus a que Lucas dá um especial relevo (3, 21; 6, 12; 9, 18.28-29; 26, 46);
  • Demanda ou consciência da cruz e da glória. O evangelho está repleto de viagens e verbos de movimento que ajudam a perceber que o caminho para a glória da ressurreição exige a passagem pela cruz, como acontece com Jesus Cristo. Exemplo possível e eloquente é o texto dos discípulos de Emaús, onde Jesus pergunta: «Não tinha o Messias de sofrer essas coisas para entrar na sua glória?» (24, 26).
Ao longo de todo o evangelho, as mulheres e os excluídos merecem um tratamento especial. Exluídos da sociedade e das suas prerrogativas, são por Jesus Cristo incluídos no processo salvífico, dado que a salvação é para todos e Jesus Cristo se afirma como o salvador universal.

Para reflectir

  • Encontre exemplos da unidade literária e temática entre Lucas e Actos dos Apostólos.
  • O que introduz o caminho de Jesus na história?
  • Qual será o ponto mais alto do evangelho de Lucas?
  • Encontre exemplos dos procedimentos necessários para aceder à salvação.
  • Ler e comentar Lc 15.

Bibliografia básica

A. George, Para ler o Evangelho segundo S. Lucas, ed. Difusora Bíblica, Lisboa 1979 (Caderno Bíblico n.° 1).
Y. Saoút, Evangelho de Jesus Cristo segundo S. Lucas, ed. Difusora Bíblica, Fátima 2009 (Caderno Bíblico n.° 103).
AA. VV., Os milagres no Evangelho, ed. Difusora Bíblica, Lisboa 1986 (Cadeno Bíblico n.° 20)
P. Grelot, Os Evangelhos. Origem, data, historicidade, ed. Difusora Bíblica, Lisboa 1985 (Caderno Bíblico n.° 18).
Ch. Perrot, Narrativas da Infância de Jesus, ed. Difusora Bíblica, Lisboa 1990 (Caderno Bíblico n.° 9).
J. Briend, As tentações de Cristo no deserto, ed. Difusora Bíblica, Lisboa 2007 (Caderno Bíblico n.° 97).
J. Dupont, A mensagem das Bem-aventuranças, ed. Difusora Bíblica, Lisboa 1991 (Caderno Bíblico n.° 33).
D. Marguerat, As parábolas, ed. Difusora Bíblica, Lisboa 1998 (Caderno Bíblico n.° 61).
AA. VV., A parábola do filho pródigo (Lc 15), ed. Difusora Bíblica, Lisboa 2000 (Caderno Bíblico n.° 68).
S. O. Abogunrin, «Lucas», in AA. VV., Comentário Bíblico Internacional, pp. 1244-1307.
R. Truchon, Para ler as parábolas, ed. Perpétuo Socorro, Porto 1992.
I. Storniolo - E. Balancin, o. c., pp. 155-156

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Postado por Marcelino Paulo Ferreira | 4.2.13 | Sem comentários
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