— história de uma vocação —
I.
Os pássaros fugiam do laranjal, num frenesim, deixando atrás de si uma espessa nuvem de sombra que se reflectia sobre o adro da Igreja. As laranjas adquiriam, então, um brilho intenso, uma cor doirada, uma leveza que parecia vinda de outro tempo. Benjamim, era um rapaz só, pés descalços, em meio àquela sombra. Olhava o voo geométrico, histérico, dos estorninhos, enquanto ensaiava num assobio uma qualquer modinha recuperando, feliz, a bola que momentos antes embatera violentamente na folha de zinco da porta da velha torre sineira. Parecia um rito diário. Tudo para ver os pássaros em debandada. O voo desordenado inspirava-lhe sempre novas melodias na sua rara arte de assobiar. O ritmo dos pássaros em fuga era a sua música preferida e Benjamim amava, em segredo.
O velho cónego, homem habituado às longas vigílias, lançava um olhar severo ao miúdo por entre o vitral ausente dos grandes janelões da Igreja e dissimulava a sua alegria em timbre perfeito e em contraponto: “orate fratres”...
Eram assim os dias de Benjamim, entre assobios e pássaros que voam, entre os jogos da infância e o manto de oração do velho pároco, à beira da grande Porta do Templo.
Mas nem todos perdoam a inocência e aquela bola parecia concentrar a violência do mundo. Álvaro, o filho do dono do laranjal, impacientava o momento sacramental da vingança.
II.
Era um grande dia aquele. Benjamim reparara na estranha ausência dos pássaros, na cor plúmbea das árvores, no acentuado odor acre do ar. Caminhava alheio, contudo, livre e assobiando uma nova cantilena recentemente inventada... O velho cónego não chegara ainda ao altar e o perfume do incenso não subira ainda aos céus. Sem fazer perguntas Benjamim prepara a bola e desata o laço das botas que coloca de parte porque há luxos que um miúdo não se pode permitir. As bandeiras roxas no adro dão conta da presença do vento; a bola em posição. Benjamim lança um tímido olhar às árvores, quase suplicante, e corre para a bola, violento, como a salvação. Descontrolada, a indigente esfera voa até se perder no meio do laranjal, como se de uma floresta escura se tratasse.
O sacristão, entretanto, agarrava-se agora às cordas do grande sino e refém daquele movimento ascendente fazia soar as três horas da tarde. O velho cónego prostrado por terra repetia em alta e penitente voz: “Deus meus, Deus meus, ut quid dereliquisti me?”.
Benjamim perde-se entre o espectáculo dos sinos, a memória daquele dia, o drama de um céu sem pássaros e a bola irremediavelmente perdida. O olhar do rapaz do laranjal era de um fogo inclemente e adulto. Sem piedade, premeditado, Álvaro crava um prego na bola, como se do crucificado se tratasse.
Um silêncio desce sobre todas as coisas. O véu do templo rasga-se de novo. Benjamim, fora iniciado, ferido mortalmente, como o coração de Jesus.
III.
Celeste, não obstante, a manhã daquele terceiro dia. Benjamim levantara-se e o doce perfume das flores espalhadas à soleira da porta misturava-se ao cheiro da cal, da lixívia e da cera das abluções pascais. Hoje acompanhava o velho ancião no compasso e seria o “rapaz do sino”. Já se via vestido com a novíssima túnica de púrpura e roquete branco, rendas a fazer lembrar o favo das colmeias ou as grandes teias pacientemente tecidas. Mas um não sei quê impedia-o de ser feliz.
Passara-se o sábado e nem sinais da bola, dos pássaros, tão pouco dos assobios. Diante da Porta do Templo não resiste a um último olhar ao céu, impiedosamente azul.
Uma intensa luz invadia o interior do templo setecentesco. Havia muitas flores, todas brancas como naquela outra manhã. A missa iniciara e o coro entoava o “Gloria in excelsis Deo” ao som das campainhas enlouquecidas. O velho pároco parecia, também ele, cúmplice daquela luz e ao ver Benjamim sorriu.
O velho ancião despojara-se dos ricos paramentos pascais e num gesto contido chama à parte Benjamim. Afaga-lhe a cabeça, desajeitado, pouco habituado aos afectos, e entrega-lhe um embrulho, sem laço.
– Abre, é um presente.
O miúdo apressa-se a abrir. Não sabe o que pensar daquele gesto. Sonha uma bola, mas evidentemente o volume não a fazia adivinhar.
– Gostas?
– É comovente. Como se ganhasse asas.
– Com isso poderás voar até aos anjos, falar com eles. Mas recorda-te “se não tiver amor, sou como um sino que retine”.
Durante todo o dia, em todas as casas que entrava e encontrava um dos seus amigos, mostrava-lhes o livro de solfejo acariciando as notas musicais. As lágrimas corriam-lhe pelo rosto, harmoniosas. Nesse dia de Páscoa decidira que a sua vida nunca mais seria a mesma.
Sentia-se redivivo!
Padre Mário Rui Leite de Oliveira
— Roma, 14 de Novembro 2012 — Semana dos Seminários —